Sonic the Hedgehog
Mesmo sendo um sucesso enorme no Brasil e importante em alguns lugares da Europa, o Master System foi uma das maiores surras que a Sega já tomou durante uma geração. No Japão a coisa não foi tão séria porque a Sega era um enorme sucesso nos arcades, muito graças à genialidade de Yu Suzuki, e não estava verdadeiramente focada em consoles de mesa. Mas no resto do mundo, em que o mercado de arcades era bem mais limitado, a Sega não conseguia alcançar grande relevância. Quando o Master System foi finalmente abandonado, a Nintendo dominava 94% do mercado de consoles nos Estados Unidos enquanto a Sega tinha risíveis 4%.
A Sega of America, filial responsável pelo mercado dos Estados Unidos, estava decidida a não tomar outra surra na geração seguinte. Montou um plano ambicioso e projetou que com apoio da Sega japonesa, um console novo lançado antes da concorrência, um investimento financeiro considerável, personagens voltados para o público ocidental e uma campanha de marketing que entrasse com OS DOIS PÉS NO PEITO, seria até possível destronar a Nintendo e conseguir a maioria do mercado de consoles no país. Os japoneses acharam o plano muito engraçado, mas o sucesso inicial do console da Sega nos Estados Unidos mostrou que a ambição ianque não era pura insanidade. Americanos e japoneses começaram, então, a trabalhar de maneira mais integrada, lançando jogos japoneses com temática estabanadamente ocidental como Altered Beast e Golden Axe, ambos grandes sucessos que já analisamos por aqui.
No entanto, o lançamento do Super Nintendo atrapalhou bastante os planos da Sega. Bem mais avançado tecnicamente, muitas das coisas que o Super Nintendo podia fazer assim que saía da caixa eram apenas SONHO para o Mega Drive, que já tinha dois anos nas costas e um hardware limitado quando a Nintendo entrou na nova geração. “Super Mario World” era um jogo impecável, uma pérola de gameplay e vendia Super Nintendos como água. A Sega precisava de um jogo que fosse uma resposta ao Mario tanto em termos de atitude quanto em termos de jogabilidade. Foi assim que em 1991 surgiu “Sonic the Hedgehog” para Mega Drive.
“Sonic” não é um jogo que possa ser analisado em si mesmo. Todas as suas escolhas, da aparência do personagem principal às mecânicas propostas, tem “Super Mario World” como plano de fundo – às vezes como inspiração, às vezes como modelo do que não deve ser feito. Sua grande intenção é mostrar que o mundo de Mario é vasto, colorido e agradável como todo bom conto de fadas, mas que aqueles que jogaram o primeiro “Super Mario Bros.” durante a infância em 1985 já haviam se tornado adolescentes que mereciam algo mais interessante, ousado e veloz do que a Nintendo estava disposta a oferecer.
As propagandas tentavam deixar isso bem claro, mostrando o Super Nintendo como a continuação de um modelo que tinha como público-alvo as crianças e o Mega Drive como algo capaz de entregar a adolescentes e adultos aquilo que eles queriam e não sabiam que existia. No começo da década de 90 já existiam jogos adultos (como “Leisure Suit Larry“, por exemplo), mas eles estavam quase inteiramente na cena de jogos para computador. O público casual, aquele que não tinha um computador em casa e não queria garimpar títulos razoavelmente obscuros e nem ficar lidando com disquetes, estava plenamente acostumado com jogos infantis e com as regras de conteúdo da Nintendo que forçavam qualquer cartucho a adequar-se à “família tradicional” americana. O que a Sega estava fazendo com seu Mega Drive, do qual Sonic seria o símbolo máximo, era criar na unha um mercado invisível, oferecendo uma experiência que a maioria dos jogadores não conhecia e portanto não estava previamente interessada.
O anti-Mario
Sonic era planejado para agradar o ocidente a começar pelo seu visual, que é assumidamente a mistura de Mickey Mouse com o Gato Félix usando os sapatos do Michael Jackson. A esse amálgama bizarro, pequenos detalhes foram adicionados para tornar o personagem um porco-espinho apenas com a intenção de que ele pudesse portar espinhos agressivos pelo corpo e encolher-se numa bola para percorrer os cenários. Os japoneses tinham certeza de que a combinação agradaria a Sega of America, mas o personagem foi recusado múltiplas vezes pela filial americana por não ser “ocidental o bastante”, recebendo sugestões de ganhar mais músculos e roupas heroicas. No braço de ferro a Sega japonesa sempre acabava ganhando e Sonic foi lançado em sua versão pançudinha mesmo, como originalmente desenhado. No fim, o visual mais cartunesco e gordinho do Sonic serviu para aproximá-lo do Mario e, justamente por isso, tornou as pequenas diferenças entre os dois mais gritantes, como os olhos maliciosos do porco espinho, seu braço desafiadoramente na cintura, e os espinhos parecendo ainda mais agressivos frente ao encanador de aparência indefesa.
Em termos de jogabilidade, a escolha pelos espinhos era uma tentativa de modificar a mecânica de “Super Mario World” para torná-la mais rápida e fluida. Com eles o personagem Sonic podia pular contra seus inimigos de maneira mais livre sem ter que planejar saltos milimétricos em suas cabeças, apenas jogando seu corpo no ar em velocidade. Além disso, a possibilidade de fazer Mario correr ao segurar um botão do controle foi transformada em uma ação natural para o Sonic, que pega velocidade sozinho quando anda para frente sem botão algum. Lidar com os inimigos passou a ser então uma questão de se atirar contra eles velozmente, e não de calcular saltos e riscos. Para garantir essa jogabilidade mais orgânica e ousada, a Sega precisou inovar no sistema de danos: se Mario morre com um ou dois golpes dos inimigos, e se em outros jogos existe uma barra de energia que vai se esvaindo com os golpes, em “Sonic the Hedgehog” é possível apanhar infinitamente desde que o personagem tenha consigo um dos inúmeros anéis espalhados pela fase.
Moedas, mas com propósito
É preciso lembrar que nos jogos do Mario existem moedas espalhadas pelos cenários que, ao serem coletadas, não apresentam qualquer benefício para o personagem – são mero resquício dos jogos de arcade, servindo como modo de aumentar a pontuação final. “Super Mario Bros.” é um jogo preso entre dois modelos: o de pontuação, com seu contador no alto da tela e moedinhas a serem apanhadas (e aquele barulho deliciosamente satisfatório ao dar uma cabeçada em blocos que contém moedas escondidas), e o narrativo, em que aquilo que realmente importa é avançar em direção ao final da história e resgatar a princesa. Meio confusos com esse híbrido bizarro, ficamos felizes em coletar moedas mesmo sem jamais olhar para a pontuação.
“Sonic the Hedgehog” repensa a questão, colocando anéis equivalentes às moedas no caminho do personagem para que sejam coletados em alta velocidade e mantendo aquela estranha sensação de satisfação que conhecemos do Mario, mas dando aos anéis um papel fundamental na jogabilidade: eles funcionam como uma espécie de proteção do personagem. Quando toma qualquer dano, Sonic solta TODOS os anéis que pegou na fase até aquele momento; caso sofra dano sem possuir nenhum anel, é morte certa. Mas a sacada está no fato de que os anéis que são soltos pelo Sonic após o dano podem ser recuperados antes de desaparecerem poucos segundos depois, basta que o jogador pense rápido e se coloque novamente em movimento.
Isso leva a um jogo que encoraja o jogador a COMETER ERROS: os pulos contra os inimigos podem ser feitos sem muito planejamento porque não exigem tanta precisão, o dano não é fatal caso você tenha posse de um dos vários anéis disponíveis pela fase, e caso dê TUDO ERRADO basta levantar a cabeça e continuar andando pra frente de modo a recuperar alguns anéis e, consequentemente, a velocidade. Essas simples mudanças no pulo e no dano já criam uma jogabilidade radicalmente diferente de “Super Mario Bros.”, muito mais dinâmica e com menos espaço para frustração.
Todos os outros elementos de “Sonic the Hedgehog” apenas trabalham para reforçar essa jogabilidade: as fases são mais curtas do que as dos jogos do Mario, incentivando o jogador a correr até o seu final; a tela passa mais rapidamente pelos olhos, dando uma sensação de velocidade que leva o jogador a acelerar a jogatina; a música de Masato Nakamura (ou do genial Yuzo Koshiro na versão mais pobre de Master System) é mais rápida e animada para contribuir com a jogabilidade; as fases tem múltiplos caminhos até o final que levam o jogador a ter que tomar decisões rápidas de rota; e o próprio design das fases ajuda o jogador a manter a velocidade com rampas, loopings e molas que impulsionam Sonic pelos ares.
O maior inimigo do jogador acaba sendo a eventual parede que bloqueia o caminho previamente imaginado. Ao invés da precisão nos pulos para alcançar plataformas ou atingir a cabeça dos inimigos, “Sonic the Hedgehog” leva o jogador a se arriscar, a experimentar com a inércia do personagem, tentar aumentar ou diminuir sua velocidade na medida exata para não frear nos obstáculos, e explorar os diversos caminhos em busca das rotas mais rápidas, fáceis ou recompensadoras rumo à linha de chegada. As fases são grandes em tamanho e com enorme variedade, abertas para o jogador que quiser explorá-las em busca de itens especiais, vidas ou segredos, mas são curtas EM DURAÇÃO, com qualquer das rotas escolhidas levando rapidamente ao final se o jogador não se atrapalhar demais. E para apimentar as coisas, volta e meia Sonic precisa resolver um ou outro quebra-cabeça simples para abrir portas e liberar caminhos, apenas para evitar as críticas de que “Super Mario Bros.” não era nada mais do que um “jogo de andar para frente” e agradar diversos públicos.
Essa variedade de rotas, caminhos e mecânicas faz com que “Sonic the Hedgehog” seja O PESADELO do “speed run”, as tentativas de dominar as regras da máquina para construir o caminho definitivamente mais rápido até o fim do jogo. Basta uma pequena variação na inércia de Sonic, uma trombada com uma quina de plataforma e pronto, já se faz necessária toda uma nova rota rumo ao final da fase, de modo que é impossível dominar todas elas. Até os bugs do jogo, que teleportam o personagem automaticamente para o fim da fase, são meio incontroláveis e funcionam apenas ocasionalmente. Assistir a uma tentativa de “speed run” de “Sonic the Hedgehog” é certamente um espetáculo curioso de adaptação e improviso.
O legado do porco-espinho
Toda essa variedade, velocidade e uma jogabilidade que leva ao risco e à improvisação tornaram “Sonic the Hegdehog” o símbolo do que a Sega queria mostrar nos Estados Unidos. Mesmo com um console tecnicamente ultrapassado, a Sega japonesa conseguiu com Yuji Naka e um time de programadores sensacionais simular no suor várias coisas que apenas o Super Nintendo deveria ser capaz de fazer. Enquanto a Nintendo ostentava a fantástica tecnologia do Mode 7, a Sega fazia os cenários das fases bônus de “Sonic the Hedgehog” girarem numa espécie de 3D na base da engenhosidade só pra mostrar que conseguiam, que era possível competir. A Sega provou que o talento de seus programadores era mais importante do que a tecnologia à disposição, que havia um público mais velho cansado de jogos infantis ainda que não soubesse disso, e que jogos ousados com propagandas ousadas eram o bastante para convencer esses jogadores a comprarem o console menos poderoso.
Ao fim da geração o Mega Drive realmente havia vendido mais cópias do que o Super Nintendo nos Estados Unidos, criando uma briga de egos entre a Sega japonesa e a Sega of America da qual a empresa nunca se recuperou. Além disso, a vitória da Sega subiu à cabeça e a empresa não conseguiu deixar o Mega Drive morrer quando chegou a hora, tentando prolongar sua vida com uma série de expansões caras e pouco populares. Mas durante esse curto período de sucesso, Sonic foi o mascote perfeito: a representação clara de uma atitude perfeitamente transferida para uma jogabilidade, e resultado de pequenas e simples variações de design que o afastaram dos jogos de Mario apenas na medida certa. O resultado foi que a indústria de jogos acabou seguindo os passos da Sega, pensando em jogos mais maduros (ainda que não tenha conseguido, por mais uma década após o Mega Drive, pensar para além dos adolescentes) e estimulando a velocidade, a ação e uma experiência que incentiva os erros e diminui ao máximo a frustração como vemos até hoje. É por isso que “Sonic the Hedgehog” é nossa volta ao Pixel das Galáxias, merecendo nosso prêmio máximo dado apenas aos jogos imortais: todo jogo de ação da última década ainda bebe nessa fonte, mesmo que a própria Sega nunca tenha conseguido reproduzir essa mágica (e tenha destruído o personagem no processo de tentativas) após o fim do Mega Drive.