River City Ransom
A Technos inventou o gênero beat ‘em up com a história de Kunio, o esquentadinho, estrela juvenil da versão japonesa de “Renegade” e que deixou sua marca na história dos videogames. Mas a verdade é que a Technos estava só se aquecendo: Kunio ainda apareceria em muitos jogos da empresa, incluindo um que revolucionaria o gênero e seria uma das maiores pérolas dos jogos de 8 bits: “River City Ransom” (ou “Dowtown Nekketsu Monogatari” no original japonês) pegou todas as regras criadas com seu antecessor – que gerariam também “Double Dragon”, sucesso inquestionável no mundo inteiro – e jogou na privada, dando ao beat ‘em up elementos de RPG e criando uma experiência única que as empresas rivais simplesmente não conseguiam copiar. É por ser tão revolucionário quando seria fácil repetir a fórmula que a própria Technos consagrou – e por continuar de maneira tão evoluída a história de Kunio, que iniciou nossa série “Te pego lá fora” de segunda-feira – que “River City Ransom” é nosso PIXEL DAS GALÁXIAS adiantado de hoje!
Uma viagem pixelada para o Japão
Em “Renegade”, Kunio é um aluno de segundo grau que sai na porrada com todo mundo que se mete com seu coleguinha Hiroshi. Em “River City Ransom”, o mesmo Kunio acaba mostrando que tem coração mole ao aceitar ajudar um dos valentões do jogo anterior a recuperar sua namorada, sequestrada pelos estudantes igualmente valentões de uma escola rival.
No Japão a rivalidade entre escolas locais é muito forte. Cada uma ostenta pequenas variações de cor e estilo dos mesmos uniformes tradicionais, que em geral são pretos, e brigas entre alunos de escolas distintas é algo relativamente comum no cotidiano escolar. Humanizar um desses alunos briguentos que tem como grande talento bater nos outros ao mostrar que ele se importa com os outros, que é incompreendido e que no fundo só quer fazer o bem é um lugar-comum do imaginário japonês. Por isso, o valentão do colegial que é bom de briga mas tem coração de mãe (em que sempre cabe mais um) é um tema recorrente em mangás infanto-juvenis que se popularizou no ocidente especialmente através do desenho animado “YuYu Hakushô” no final dos anos 90. Só que em 1989 a Technos achou que esses elementos culturais seriam muito difíceis de explicar para o público de fora do Japão e cuidou ela mesma de criar uma nova versão em solo americano, substituindo os alunos e seus uniformes por gangues, camisetas brancas e calças jeans. Pequenas alterações também foram feitas em todas as placas das ruas e na arquitetura de algumas lojas.
Mas o engraçado é que essas modificações não são tão radicais quanto em “Renegade” e o resultado é que nada disso impede o choque cultural evidente: eu era uma criança remelenta sem nenhuma noção geográfica quando joguei “River City Ransom” pela primeira vez e mesmo assim eu tinha uma estranha consciência de que aqueles cenários que compunham o jogo não eram os que eu via no dia-a-dia da minha cidade tupiniquim, mas também não pareciam inventados, frutos da imaginação de alguém. Concluí na minha cabeça infante, através dos pixeis de um jogo de Nintendinho, que aquilo deveria ser como dar um passeio pelas ruas de uma cidade japonesa. E a emoção dessa conclusão era enorme para uma geração acostumada com cenários fantasiosos e que morria de curiosidade de saber como era aquele país que gerava nossos jogos favoritos.
Pseudo-3D
Essa sensação transmitida pelos cenários se torna ainda mais importante se levarmos em conta que a cidade em que se passa “River City Ransom” é um dos seus elementos mais importantes de jogabilidade. Ao invés do que acontecia em “Renegade” (e que seria o modelo de tudo quanto é beat ‘em up por décadas a fio), em que as telas vão sendo apresentadas de maneira linear, uma após a outra, com inimigos a serem combatidos no processo, em “River City Ransom” a cidade é toda interligada e pode ser explorada livremente pelo jogador na ordem em que ele bem entender. O único lugar trancado é a escola rival em que a refém está presa, e a porta só se abre após todos os chefes terem sido derrotados. Fora isso temos um mundo aberto como em “The Legend of Zelda” e mais de uma dezena de gangues diferentes (no original, escolas diferentes) que andam livremente por esse mundo, tendo que ser derrotadas na base da porrada.
Explorar as diferentes partes da cidade, sua arquitetura e as gangues que lá habitam é portanto uma das graças do jogo, tornada ainda mais incrível pela quantidade de interação com o cenário. É possível pegar todos os itens que surgem no caminho (cones de sinalização, latas de lixo, pneus, correntes, canos, até inimigos caídos), entrar em diversas lojas para comprar produtos (em geral muita, muita, muita comida) e literalmente dar CABEÇADAS nos postes se você não tomar cuidado com o caminho, porque o Kuni tem bom coração mas não tem TUTANO. Apesar de ser inteiramente em 2D, o jogo tem um cuidado revolucionário com as áreas de detecção de colisão dos objetos, criando uma sensação de tridimensionalidade e fazendo com que seja possível subir em cima de muros e casas, trombar com paredes se você estiver correndo, e usar esses mesmos elementos contra os seus inimigos – seja pulando em suas cabeças numa MORTE VINDA DO CÉU, seja prensando os coitados contra as paredes, fazendo com que sofram dano com o impacto.
O mundo aberto e a interação com o cenário permitem várias abordagens distintas por parte do jogador: é possível encurralar inimigos, fugir correndo na miúda (e fechar o jogo em 8 minutos no processo, como no vídeo abaixo), procurar as melhores armas, ou simplesmente escapar das piores encrencas correndo pelos TELHADOS da cidade – e você aí achando que “Assassin’s Creed” era suuuper original. Rá.
Quer pagar quanto?
Por mais escolhas que o jogo lhe ofereça na hora de enfrentar os desafios, nada dá mais liberdade para o jogador do que a presença do COMÉRCIO LOCAL CAPITALISTA. Cada lojinha vende uma enorme variedade de comidas SUPERFATURADAS que mudam os atributos do personagem, melhorando seus chutes, socos, pulo, saúde ou força de vontade (sua capacidade de conseguir se manter acordado mesmo depois de ter tomado uma surra que drenou toda a sua vida), dá pra aumentar os atributos indo curtir uma sauna e é possível até mesmo comprar livros que te ensinam diversos GOLPES NOVOS – mecânica repetida por outro jogo de artes marciais que se passa numa recriação fiel de uma cidade japonesa, “Shenmue“, só que exatamente uma década depois.
Ter mais golpes é essencial porque os adversários não são bolinho, não: as ruas estão sempre abarrotadas de inimigos simultâneos bem armados que correm contra você, se defendem, te cercam e te enchem de porrada a ponto de não dar nem pra levantar e tentar revidar. Enfrentar vários inimigos ao mesmo tempo é tão tenso que ver um chefe, que sempre luta sozinho, é um alívio considerável.
Escolher quais atributos aumentar, como gerenciar o escasso dinheiro (o Japão é primeiro mundo mas mesmo assim os adolescentes se MATAM nas ruas pra conseguir uns míseros centavos pra comprar doce) e quais golpes comprar torna cada personagem e cada jogatina inteiramente ÚNICOS, permitindo muitos estilos de luta diferentes e consequentemente mais facilidade contra algumas gangues e mais dificuldade contra outras. Como todo RPG, tem horas em que é precisa gastar horas matando inimigos para conseguir os pontos necessários para melhorar algum atributo ou escolher aquele golpe que você quer tanto. É por isso que os passwords do jogo, aquelas senhas gigantes que salvam o seu progresso, são compartilhadas entre jogadores até hoje. Quer ver como é um personagem com chute no máximo e uma pirueta como golpe? Tem uma senha para isso. Quer ver um personagem só com socos e ganchos? Tem outra. Dar sua senha para um coleguinha para que ele visse como você montou seu personagem era uma possibilidade fantástica, em que o jogador se sentia CO-AUTOR do jogo, moldando o personagem e podendo expor sua obra para os outros.
Essa espécie bizarra de multiplayer à distância somava-se a um multiplayer-de-sofá impecável, com a possibilidade de um jogador machucar o outro (sem querer ou sem-querer-querendo, como em “Golden Axe“) mas também de trabalhar em equipe, com vários golpes que permitem que dois jogadores se unam em alguma manobra devastadora – que inclui até um poder ARREMESSAR o outro na direção dos inimigos, mas com carinho, e por uma boa causa.
Inimitável
A tentativa de ocidentalizar o jogo não conseguiu esconder sua ambientação japonesa em parte por conta dos cenários muito característicos, mas em parte também por seu ar de desenho japonês: os personagens vão conversando enquanto se esmurram e a animação dos personagens é fantástica. Todo mundo que apanha reage com hilárias expressões faciais e frases de efeito, faz caretas típicas e tem uma gama enorme de pequenos movimentos engraçados ao interagir com o cenário.
Nunca na história do Nintendinho se viu poucos pixeis TÃO BEM ANIMADOS, tornando a estética de “River City Ransom” uma enorme influência para os jogos de visual retrô que voltaram com tudo nos videogames atuais, mesmo que sua jogabilidade refinada tenha passado décadas praticamente sem imitações. O jogo “Scott Pilgrim vs. The World” se aproveitou desse vácuo para criar em 2010 uma cópia descadara de “River City Ransom”, tanto nos pixeis quanto na jogabilidade, mas com alguns poucos toques modernos num gênero que aprendeu pouca coisa desde o fim da Technos lá no começo dos anos 90. É por isso que “River City Ransom” resiste ao teste do tempo: quinze anos depois, ainda é muito difícil recriar sua mistura de luta, RPG, mundo aberto, humor e uma ambientação japonesa CAMUFLADA pelos ocidentais cagões.