Renegade
A história dos videogames é pródiga em dualidades ocidente-oriente. Já comentamos este assunto algumas vezes cá neste Pouco Pixel: o ninja-samurai-de-braços-de-fora de “Ninja Gaiden“, o cavaleiro medieval que luta contra dragões chineses em “Ghost’n Goblins“, a salada grega de “Altered Beast“. Hoje, no início de nossa série “Te pego lá fora”, só com beat’em ups clássicos, não há como escapar: a linha leste-oeste é o personagem principal de uma história dupla. Com uma sacanagem no final.
Versão japonesa: Kunio, o esquentadinho
Kunio Taki era o CEO de uma jovem produtora japonesa de jogos, a Technos (não confundir com a Technos), fundada por três dissidentes da Data East. Até então, o único sucesso que eles tinham emplacado era “Karate Champ”, um arcade de luta um-a-um estrelado por René Higuita. Nem distribuir direito seus próprios jogos eles conseguiam – sempre acontecia via Taito ou, ironicamente, pela Data East. Isso viria a mudar em 1986, com um arcade de nome impossível: “Nekketsu Koha Kunio-kun”, ou “O esquentadinho Kunio” (leia com voz de dublador da Gota Mágica, São Paulo).
“Kunio” era um jogo sobre Kunio – dã -, um estudante de segundo grau que decide vingar seu chapa Hiroshi das provocações que sofre na escola. Imbuído de um espírito charlesbronsoniano, vai atrás dos bullies e resolve sová-los um a um. Acaba se envolvendo com gangues de motociclistas, uma turma de mulheres machonas armadas até os dentes e até com a Yakuza. No final, nada de beijo, mas um forte aperto de mão de Hiroshi, além da aprovação pública dos colegas.
Toda fase começa com o pobre Hiroshi levando umas sovas dos valentões. Kunio toma-lhe as dores e vai atrás dos safados. É nossa hora que “Kunio” inaugura propriamente o gênero do beat’em up: uns seis ou sete brucutus o esperam em algum cenário urbano, para descer-lhe o cacete. Ao contrário dos capangas de “Kung-Fu Master”, os inimigos de “Kunio” não são imbecis. Eles se defendem, atacam em grupo e – o principal – tomam vários golpes antes de morrer. Em cada cenário, um dos bullies – o mais poderoso – fica só olhando, de fora, e só entra na briga quando Kunio já conseguiu se livrar de pelo menos metade dos comparsas. É o chefão da fase, recurso que se tornou absolutamente trivial em beat’em ups e virtualmente todos os gêneros, e é fascinante vê-lo paradão, ali no canto, só esperando o momento certo de aparecer.
O gameplay é todo pensado para a briga coletiva. Há dois botões de ataque e eles têm uma lógica espacial: o botão à esquerda dá um golpe na esquerda, o botão à direita dá um golpe na direita. Se a direção do botão coincide com a frente do personagem, é um soco; se o sentido for inverso, é um chute. É meio confuso no início, mas é bolado para permitir a Kunio golpear alguém que chega por trás enquanto ele está batendo em outro. Em poucos instantes o jogador se habitua com a possibilidade de espancar dois bandidos simultaneamente, alternando os botões.
Outra característica curiosa de “Kunio” é o cenário estático, pequeno. Ao contrário dos brawlers posteriores, e mesmo de jogos como “Super Mario Bros.” (sucesso à época), Kunio não precisa andar muito para bater em seus inimigos. Cada fase é composta de uma tela e meia, no máximo duas. Isso, ao contrário do que pensamos, torna o jogo mais difícil – mais capanga por metro quadrado, e todos já estão na tela desde o começo. Bom, é um arcade, feito para papar fichas.
“Kunio” realmente papou muita ficha, o que levou a Taito, distribuidora do jogo, a levá-lo para os Estados Unidos. Lá, uma trama envolvendo secundaristas japoneses não faria muito sucesso, então a Technos precisou localizá-lo. Nascia “Renegade”.
Versão americana: o selvagem da noite
Como base da americanização de “Kunio”, a Technos usou o filme “Os selvagens da noite“, de 1979, que mostra uma Nova York dominada por gangues de adolescentes que lutam umas contra as outras e todas contra a polícia. Saca só o estilo do pessoal:
Coletinho e faixa na cabeça se transformou, graças a “Os selvagens da noite”, via “Renegade”, no figurino padrão dos jogos de pancadaria de rua.
Sem querer, a Technos criou uma lei: beat’em up bom é aquele que se passa numa rua suja de um bairro perigoso, envolvendo ~punks~ de colete e que tenha pelo menos uma fase no metrô. (Salve a Sega por tentar algo diferente.)
“Renegade”, a versão noitoselvagem de “Kunio”, foi outro sucesso. Como de costume, surgiram os ports. Como a Technos ainda estava pobrinha na época, os responsáveis pelas versões caseiras foram outras empresas. A Taito fez a estranha versão do NES; em cima desta a Natsume criou a versão do Master System; a Software Creations produziu ports para Amiga, Apple II e PC; e a Ocean para os computadores de 8 bit. E daí nasceram os filhos bastardos de “Renegade”.
Versão europeia: renegadeploitation
O gameplay de “Renegade” era fascinante e gerou belos frutos (dos quais falaremos no restante da nossa série), mas não continuações diretas. A softwarehouse britânica Ocean não se fez de rogada e assumiu a série, cometendo mais dois jogos que levam o nome “Renegade” mas não muito de seu espírito – e muito menos de sua qualidade. Sorte que ambos só foram lançados para os principais computadores do mercado europeu: o Commodore 64, o ZX Spectrum (que você, amigo brasileiro, conhece como TK) e o Armstrad CPC.
O primeiro, chamado “Target: Renegade”, de 1988, lembrava mais um “Double Dragon” genérico, nos seus cenários maiores e nas brigas coletivas mais contidas, contra dois ou três inimigos por vez. O segundo foi o insulto definitivo: “Renegade III: The Final Chapter”, de 1989, que simplesmente coloca o personagem principal numa viagem no tempo em que tinha que espancar o Capitão Caverna, múmias, cavaleiros medievais e astronautas. As fases são longuíssimas e ultrarrepetitivas – nunca o espaço-tempo foi tão tedioso. Bleargh.