Ghosts ‘n Goblins
Em nossa série “Foda pacarai” passamos por alguns dos jogos mais difíceis de todos os tempos e no processo analisamos vários tipos diferentes de dificuldade: a de memorizar (como em “Silver Surfer“), a de improvisar (como em “Radiant Silvergun“), a de construir um ritmo (como em “Ninja Gaiden“), a de bolar uma estratégia (como em “Mega Man 3“) e a de ter que comprar um guia pra saber o que raios fazer (como em “Bart vs The Space Mutants“). Terminamos nossa série então com um último modelo de dificuldade: a SAFADEZA vil, cruel e aleatória.
“Ghosts ‘n Goblins” nasceu como um arcade da Capcom que tinha como única intenção no mundo COMER TODAS AS MOEDAS dos jogadores incautos que cruzassem seu caminho. Não há inovação na história (que inexiste, sendo constituída de uma micro-cena em que a princesa é machistamente sequestrada num cemitério à noite na frente de um cavaleiro de cuecas), não há inovação na jogabilidade (que mantém o modelo de andar da esquerda para a direita matando inimigos e pulando em plataformas de maneira linear), não há inovação na temática (em que o cavaleiro mata os monstros, demônios e dragões de sempre, com a única característica notável de serem uma apreensão estabanada japonesa, fazendo com que o herói medieval acabe lutando com dragões do folclore CHINÊS).
A única coisa que diferencia “Ghosts ‘n Goblins” dos outros jogos de sua época é ser um “papa-ficha”: os desafios apresentados pelo jogo são construídos de uma maneira tal que as mortes são contantes e inevitáveis, levando o jogador a colocar uma nova ficha na máquina para continuar tentando. No momento em que um jogador finalmente terminar a jornada, é seguro afirmar que ele já terá gasto dinheiro suficiente para ter comprado o arcade e levado para casa – casa possivelmente comprada com esse dinheiro também.
Isso porque os inimigos literalmente brotam do chão em momentos aleatórios, bloqueando seu caminho ou lhe causando dano por baixo dos pés; demônios voadores surgem de maneira randômica na tela, atacando num padrão pouco compreensível e por vezes decidindo descansar longe do raio de ação do jogador, se tornando virtualmente invencíveis; além do caminho correto para chegar ao final da fase existem muitos outros, que estão ali só de sacanagem, com uma infinidade de rampas e escadas sem nenhum critério que só te confundem o tempo inteiro e comem um tempo precioso; inimigos bloqueiam sua passagem ficando em cima de escadas, te forçando a esperar a boa vontade de seus movimentos aleatórios para que saiam do caminho; e tudo isso com um LIMITE MINÚSCULO DE TEMPO, fazendo com que você tenha que passar pela fase sempre correndo.
Não temos aqui uma dificuldade que apoia a jogabilidade, que estimula a memorização ou a velocidade de raciocínio, e nem que força o jogador a bolar outras abordagens e estratégias. Temos aqui uma dificuldade que apenas fará com que o jogador passe o tempo inteiro se perguntando POR QUE esses obstáculos foram bolados dessa maneira. E embora nossas perguntas e lamentos sejam ignoradas pelos ouvidos surdos e sádicos de “Ghosts ‘n Goblins”, a sensação é de que os obstáculos sequer foram BOLADOS, que o jogo é um imenso “vamos tacar pra cima esses desafios e onde cair a gente deixa” sem qualquer planejamento a não ser deixar a dificuldade uma verdadeira TERRA DE NINGUÉM.
Se parece que estou sendo injusto com o jogo, leve isso em consideração: caso você finalmente gaste moedas o bastante, tenha sorte o suficiente e uma habilidade sobre-humana para chegar no chefe final de “Ghosts ‘n Goblins”, eis que o jogo te presenteia com a sensacional frase “ESSA SALA É UMA ILUSÃO E É UMA ARMADILHA CRIADA PELO SATÔ. E então o jogo começa DE NOVO, só que MAIS DIFÍCIL e MAIS ALEATÓRIO, e só se você enfim chegar ao final outra vez será presenteado com a esperada luta com o chefe final. Que, claro, é um chefe merda e o combate é risível, mas que ninguém nunca chegará a ver, então tudo bem.
Não existe maior tática de colocar água no feijão do que fazer um jogo simplesmente recomeçar mais difícil antes de te dar o gosto da vitória. É por isso que “Ghosts ‘n Goblins” não é um jogo verdadeiramente difícil, que te apresenta desafios dignos de alguma enorme habilidade; ele é só SAFADO mesmo, montado em cima de truques sujos que sequer se dão ao trabalho do disfarce.
E ainda assim o arcade da Capcom foi um sucesso enorme, gerando um lucro insano em moedinhas e depois sendo convertido para tudo quanto é videogame da época (de maneira igualmente SAFADA, alguns sem música, outros sem várias fases, outros com gráficos piscantes que faziam a versão de Master System do “Space Harrier” parecer um jogo de PS4). Só no Nintendinho, “Ghosts ‘n Goblins” vendeu mais de 1 milhão de cópias. Como é possível explicar isso?
Lutando contra as probabilidades
Falamos aqui, durante nossa série, que é preciso existir um acordo fofo entre jogador e game designer: o jogador se compromete a tentar vencer os desafios apenas porque confia que o game designer não colocou nada ali que seja impossível ou desleal. Mas a verdade é que o jogador só irá perceber que o acordo não foi cumprido se o jogo estiver QUEBRADO, se os botões não responderem, se a porta que deveria estar lá não aparecer na tela, ou se a física do jogo reagir cada hora de uma maneira. Fora isso, mesmo se o criador do jogo colocar um troço impossível, o jogador vai achar que se está lá é porque dá pra vencer, e aí começa a surgir a GANÂNCIA de vencer o desafio, de derrotar a baixa probabilidade de vitória.
Além disso, especialmente nos arcades, cada centavo gasto com um jogo é um INVESTIMENTO rumo à vitória, não um preço a se pagar por uma experiência, por uma fruição. Quanto mais dinheiro gasto na tentativa de terminar o jogo, mais difícil fica do jogador abandoná-lo. É como jogar num cassino: quanto mais dinheiro se perde numa mesa, mais difícil é, psicologicamente, levantar e deixar a grana perdida para trás – mesmo que o resultado de continuar no jogo seja perder ainda mais dinheiro, que tornará ainda mais difícil sair, numa terrível bola de neve.
Isso porque existe uma vontade que acomete grande parte das pessoas de tentar vencer as probabilidades, de tentar ser a pessoa que venceu os grandes obstáculos, mesmo se o prêmio for simbólico. Essa vontade de enfrentar AS FORÇAS DO DESTINO é o que está por trás de todos os jogos de azar, das adivinhas de criança (“adivinha em que mão eu escondi o botão”, etc), e de jogos de videogame muito difíceis que possuem em sua programação traços de aleatoriedade muito fortes.
“Ghosts ‘n Goblins” é muito inteligente ao te mostrar tudo que você precisa saber sobre o jogo em cerca de 15 segundos. Esse é o tempo que leva para o jogador descobrir que ele pode pular, abaixar, andar para um lado ou para o outro, atirar uma lança, que ele pode ser acertado por inimigos duas vezes (na primeira vez ele perde a armadura, passando a correr por aí de CUECAS), que zumbis brotam do chão e demônios brotam do ar. Ao fim desses poucos segundos você já está morto e precisa colocar outra ficha. Não existe muito segredo, estratégias fantásticas ou golpes secretos; é por isso que “Ghosts ‘n Goblins” vive no incrível terreno da contradição: o jogo parece ao mesmo tempo IMPOSSÍVEL pelo seu grau de dificuldade e aleatoriedade, e completamente ACESSÍVEL porque qualquer um sabe tudo que há para saber do jogo em segundos. Ninguém vai conseguir, mas todo mundo acha que consegue TENTAR. No Nintendinho, sem as moedas, mesmo quem não tinha qualquer experiência com videogames queria tentar “só uma vidinha”, ver se dava sorte. Mamães e papais se arriscavam enquanto todos na sala riam do inevitável.
E para aqueles que eram capazes de vencer as probabilidades, de GANHAR NA LOTECA, eis o prêmio derradeiro: uma tela escrita em ENGRISH (o modo quebrado e mal traduzido com que os japoneses falam inglês) e que não consegue nem escrever “congratulations” direito na hora de parabenizar.
Jogo safado, final safado. Como prêmio, apenas uma lição sobre o poder da teimosia e da perseverança nos jogos que marcou o modo de pensar e de jogar de toda uma geração de pequenos turrões e velhinhos jogadores de bingo.