Kung-Fu Master
Pensa comigo: lutar sozinho contra dezenas de inimigos não faz sentido. É uma ideia fadada a um fracasso rápido – ninguém consegue ganhar de dois ou três oponentes simultâneos e, mesmo se conseguisse, o cansaço o impediria de seguir lutando contra outros.
Isso se reflete na relativa demora no surgimento do gênero de briga coletiva nos videogames – o chamado beat’em up. Jogos de luta um-contra-um surgiram junto com o videogame. Boxe, por exemplo, sempre foi um esporte popular e aparece em games tão cedo quanto 1976, com o arcade “Heavyweight Champ”, da Sega. Mas vamos ignorar boxe e lembrar outro tipo de pancadaria que estava super na moda no final dos anos 70: artes marciais. Do Atari 2600 são famosos (ou infames?) títulos como “Karate” e “Chuck Norris Superkicks”, ambos de 1983. E para o arcade foram lançados dois jogos seminais: “Karate Champ” (84) e “Yie Ar Kung-Fu” (85). Todos luta um-contra-um.

“Karate Champ” feat. René Higuita
No meio dessa confusão toda apareceu “Kung-Fu Master”, o primeiro beat’em up. Totalmente diferente do torneio esportivo de “Karate Champ” (e do filme “Karatê Kid” também, claro), em “Kung-Fu Master” o protagonista não enfrenta um adversário por vez, em lutas limpinhas e reguladas. Desta vez ele tem que enfrentar centenas de capangas semi-zumbis que não só batem como também agarram e jogam facas, tudo ao mesmo tempo.
A origem de “Kung-Fu Master” é curiosa. Ele surgiu no Japão como uma licença de um filme de Jackie Chan chamado “Detonando em Barcelona” (!), que trata das desventuras do dono de um food truck (!!) que vê sua namorada capturada por mafiosos. Como o jogo só usa, do filme de Chan, os nomes dos protagonistas – Thomas e Silvia -, a produtora Irem resolveu distribuir o arcade globalmente mesmo sem a licença apropriada, alterando o nome de “Spartan X” para “Kung-Fu Master”. Pronto! (O port para Nintendo, incluído na primeira leva do NES americano, foi renomeado para “Kung-Fu” simplesmente, o que leva a crer que novos ports poderiam se chamar “Kung” e, finalmente, “Ku”.)
O gameplay é de uma simplicidade comovente. O vilão, preguiçosamente batizado de Mr. X, prendeu Silvia no último andar de seu quartel general, um edifício de cinco andares. Thomas deve entrar no prédio, bater em uma incontável quantidade de capangas andar por andar, até chegar ao vilão e à namorada. Como armas, somente socos e chutes, que podem ser combinados com pulos e agachamentos – quer dizer, é um arsenal até variado. Os inimigos são incrivelmente burros e seu único poder é a quantidade – eles simplesmente andam em sua direção, sem nunca parar nem jamais esboçar defesa ou outro movimento. Eles internalizaram seu papel de bucha-de-canhão com resignação monástica. Foram criados para morrer e à morte caminham.
Ao final de cada andar Thomas precisa enfrentar um sub-chefe, um brucutu armado um pouco mais perigoso. E alguns andares do prédio são repletos de armadilhas, como vasos explosivos, cobras e dragões flamejantes. Mas preciso confessar: para mim nada pode ser mais assustador que as hordas de capangas imbecis que vão tomando, pouco a pouco, a tela. É uma versão oriental de um APOCALIPSE ZUMBI, um pesadelo de ansiedade que a musiquinha frenética torna cada vez mais insuportável. Quando os inimigos vão se acumulando e agarram, socos e chutes não são mais efetivos – a única defesa é mexer os direcionais para os lados, desesperadamente, como se estivesse se debatendo para acordar de um sonho ruim.
A história dos videogames está repleta de inimigos estúpidos, mas nenhum se compara aos capangas de “Kung-Fu Master”. Os beat’em ups que se seguiram, como “Renegade” ou “Double Dragon” são todos cheios de buchas-de-canhão, mas são buchas capazes de se defender minimamente, desviar de golpes e oferecer algum desafio ao jogador. Mesmo os alienígenas de “Space Invaders” ou os objetos assassinos de “Megamania” são mais espertos e têm mais riqueza de movimentação do que os zumbis-de-kimono de “Kung-Fu Master”.
Acho mesmo que o legado sensacional de “Kung-Fu Master” é mais que o abandono temporário das lutas um-para-um e a criação do beat’em up – gênero que sobreviveria mais uns 10 anos. Tem a ver com o surgimento, avant la lettre, do SURVIVAL HORROR, na assustadora versão Chinatown. Brrr.