Alone in the Dark
Pense num jogo muito difícil, algo como “Ninja Gaiden”, por exemplo, que te faz chorar na calçada. Nele, os inimigos são cruéis e poderosos e qualquer deslize por parte do jogador é morte certa. Mas por mais que esses inimigos sejam frustrantes, que palavrões sejam proferidos e que controles voem contra paredes, há sempre a certeza de que com a quantidade certa de habilidade e sorte esses inimigos serão derrotados e a fase será vencida. É nisso que “Alone in the Dark” se diferencia dos demais jogos de sua época: vários dos inimigos não podem ser derrotados, são poderosos demais. O jogador não passa de uma criatura frágil e impotente diante de forças incompreensíveis. E isso dá muito, muito cagaço.
Criado em 1992 pelo francês Frédérick Raynal sob tutela da Infogrames, “Alone in the Dark” foi inovador em tantos aspectos que acabou gerando o seu próprio sub-gênero, o survival horror, ou horror de sobrevivência. Essa variante da ação mantém o mote principal do gênero de colocar um protagonista enfrentando inimigos através de comandos em tempo real, mas subverte a ideia diminuindo em tal medida o poder do jogador que o foco principal acaba sendo não em matar o máximo de inimigos possível, mas sim em simplesmente sobreviver mais um pouquinho. Esse feito é alcançado diminuindo a quantidade de armas disponíveis, limitando a munição a níveis ridículos e colocando inimigos verdadeiramente desafiadores – ou até mesmo imortais, como no caso da obra de Raynal. Isso faz com que o combate, embora essencial, seja evitado sempre que possível, levando à ênfase na exploração e na gestão de recursos, com cada bala ou kit de primeiros socorros sendo valorizados como um tesouro inestimável.
Para garantir esse cenário de fragilidade ao personagem, Raynal escolheu situar seu jogo por volta de 1920, onde já havia uma oferta regular de armas de fogo (que permitem ao mesmo tempo uma sensação de empoderamento do personagem, e um desespero porque as balas vão acabando e munição é muito difícil de encontrar) mas não existiam ainda as facilidades tecnológicas que poderiam facilitar demais a vida do personagem, como luz elétrica, telefone, lanternas, baterias, etc. Além disso, o começo do século é uma época viável para fazer uso de toda a mitologia criada ou mobilizada pelo escritor de terror H. P. Lovecraft, famoso por suas histórias de pessoas comuns entrando em contato com criaturas ancestrais, poderosas e incompreensíveis, e que terminam quase sempre com os protagonistas loucos ou mortos – não necessariamente nessa ordem. Situar “Alone in the Dark” dentro dessa mitologia faz com que o personagem principal cruze com uma série de criaturas muito mais poderosas do que um simples mortal, e contra as quais dar um tiro de pistola é sempre uma ideia estúpida. Saídas mais inteligentes no jogo são passar por essas criaturas na miúda, fugir desesperado, ou mobilizar outras forças sobrenaturais sempre incompreensíveis e fora do controle total do personagem – talismãs, facas rituais, tapeçaria indígena, tomos antigos.
Joguei muito “Alone in the Dark” quando era criança num computador fraquinho, com monitor preto-e-branco. Na época, já era bem versado na nerd arte de dizimar dúzias de inimigos em qualquer joguinho de ação por aí. Lembro de enfrentar os primeiros zumbis que apareceram no meu caminho em “Alone in the Dark” com naturalidade, rindo um pouco por dentro do fato de que os gráficos poligonais faziam esses mortos-vivos parecerem mais com SAPOS humanoides, só que cinzas porque meu monitor não ajudava. Mas bastou que eu entrasse numa sala com uma criatura translúcida sentada numa poltrona à frente de uma lareira para que minha relação com o jogo mudasse completamente. Pra começar, a criatura não me atacou – ficou lá, de boa na lagoa, confortavelmente sentada. Com muito receio explorei a sala em que a criatura se encontrava, até que sem querer acabei esbarrando nela – parte por desleixo, parte porque os controles eram ABISMAIS de ruins, mas disso a gente fala depois. Após ser tocada a criatura levantou da cadeira, transformou-se num amontoado de bolhas borbulhantes (quem nunca), ignorou cada um dos meus raros disparos de revólver, e me sufocou até a morte. Nunca mais quis entrar naquela sala.
Num caso similar, estava como era de costume lendo os livros disponíveis na biblioteca da mansão em que se passa o jogo, tentando entender um pouco daquela mitologia bizarra, daquelas criaturas intocáveis, e daqueles rituais macabros constantemente mencionados aqui e ali. Até que abri um livro que parecia não estar em qualquer língua conhecida, e cujas páginas foram imediatamente responsáveis por invocar um estranho encantamento que levitou meu personagem e o arremessou contra o chão já morto. Fim. Nada foi explicado, mas a sensação sempre era de que lá no fundo, por trás de toda a ignorância humana, estava um mundo oculto e assustador que fazia todo sentido.
“Alone in the Dark” é cheio de pequenos momentos de morte instantânea ou quase-instantânea como esses. Vários jogadores tem horror a esse tipo de coisa, que consideram cruel, injusto e frustrante. Reconheço essas características, mas acredito que não necessariamente são negativas. No caso de um jogo que está pela primeira vez se esforçando para limitar a ação e impor uma sensação de fragilidade, saber que é possível morrer a qualquer momento nas mãos de forças ocultas incompreensíveis realmente constrói uma sensação de horror, de busca pela sobrevivência, e faz justiça à obra lovecraftiana.
O fato de que o jogo se passa o tempo inteiro numa mansão, que o personagem – investigador particular – visita após o suicídio do dono a pedido de um colecionador que quer tomar posse de um piano (melhor pior história), ajuda para criar um clima claustrofóbico e a escassez de recursos – preso no mesmo cenário, não rola de ir na vendinha da esquina comprar munição ou uma granada. Outro fator na mesma direção é o sistema de inventário: cada item encontrado no jogo tem um peso, contribuindo para uma carga máxima que o personagem é capaz de carregar. Ultrapassado esse limite de peso, objetos precisam ser abandonados no chão, forçando o jogador a voltar para recuperar coisas que antes pareciam desnecessárias ou que simplesmente eram pesadas demais para serem carregadas. Cada viagem de ida e volta rumo a uma sala precisa ser calculada e planejada, e todo o processo é dificultado pelo fato de que existem vários objetos inúteis que, ainda na dúvida sobre seus propósitos, o jogador acaba carregando de um lado para o outro PRA NADA, ocupando o precioso espaço no seu inventário. Ao mesmo tempo, é possível deixar para trás itens completamente obrigatórios e só perceber que você precisa deles quando já é tarde demais para recuperá-los. O exemplo clássico e mais SAFADO de todos: ao adentrar as catacumbas escondidas embaixo da mansão, é necessário levar um lampião e um modo de acendê-lo, como por exemplo uma caixa de fósforos. Só que basta aprofundar-se pelos corredores subterrâneos pro personagem se enfiar até a cintura dentro da água, molhar a caixa de fósforos e INVIABILIZAR seu uso. Minutos depois, sem poder acender o lampião não é possível avançar e enfrentar o chefe final – mas retornar para a mansão também é impossível, tendo em vista que a ponte que ligava os dois cenários desabou. Então está lá, o fantástico investigador particular Edward Carnby preso para sempre no LIMBO do jogo simplesmente porque deixou de pegar o maldito ISQUEIRO antes de adentrar as catacumbas. Dá pra dominar a experiência, otimizar cada ação, e terminar o jogo em 10 minutos, mas basta um item que você usou sem querer e se quebrou e alguns puzzles simplesmente não podem ser mais solucionados.
É cruel, é sádico, é muitas vezes desnecessariamente SAFADO, mas nenhum jogo até então era capaz de criar essa sensação de impotência – não por eu não conseguir apertar os botões rápido o suficiente, mas simplesmente porque o mundo ao meu redor é muito mais do que me é possível digerir.
Aliás, apertar os botões é algo tão desimportante nessa experiência toda que ninguém se preocupou em arrumar esse comandos QUEBRADOS. Fazer o personagem correr é um ato comparável ao de dar a luz a um hipopótamo, exigindo dois toques no direcional que só disparam uma corrida em casos de extrema sorte ou de eclipse lunar – na maior parte do tempo seu personagem estará dando micro-passos sincopados para frente, numa dancinha pagã e macabra, um num sambinha maroto. E na falta de munição, é possível enfrentar os monstros da mansão na base da PORRADA, que o Carnby manja dos caratês a ponto de sentar a mão na cara de zumbis e demônios sem dó. Só que os comandos são ERRADOS, bater é tarefa das mais difíceis, e a sensação de impotência aparece em cada soco e chute que é dado no ar porque você se atrapalhou todo com os botões.
Parte do estranhamento com os controles está no fato de que “Alone in the Dark” é um dos primeiros jogos a usar cenários pré-renderizados (ou seja, fotos ou desenhos em duas dimensões) com personagens e inimigos modelados em 3D. Como resultado temos uma mansão visualmente impecável e detalhada, vários ângulos de câmera diferentes e estilosos que vão mudando toda vez que o personagem sai dos limites da tela, e um Carnby (com meia-dúzia de polígonos tortos que mal parecem ter lugar ali em meio a tanta beleza) que precisa ser controlado com comandos de “tanque”, já que as mudanças constantes de câmera mudariam também a direção dos controles de uma hora para a outra, o que seria um desastre. Depois de “Alone”, tudo isso virou padrão na indústria: os cenários pré-renderizados, os comandos de “tanque”, as câmeras cinematográficas. E para os jogos de terror, também virou padrão cada escolha de design: a limitação de inventário, os inimigos desafiadores ou imortais, a escassez de recursos – e para uma certa série de zumbis da Capcom lançada quatro anos depois, ficou padrão até a escolha pela mansão e os corredores subterrâneos.
Mais de 20 anos depois, os jogos de terror ainda bebem generosamente nessa fonte original, e quanto mais tentam se recriar, mais chegam às mesmas conclusões que Raynal em 1992: não há medo possível quando o personagem é mais forte do que o inimigo. É por isso que mesmo com o controle ATROZ e o bigode mais CAFONA da história dos videogames, “Alone in the Dark” é um PIXEL DAS GALÁXIAS e faz o que sempre se propôs: sobrevive.
(Toda semana escolhemos um jogo mó brasa, mora, pra levar o troféu PIXEL DAS GALÁXIAS, a maior competição desde aquela que elegeu a nova loira do Tchan – que aliás é linda, deixa ela entrar.)