Silver Surfer
A maior parte dos jogos de videogame são jogos de competição: uma disputa entre um jogador e outro, ou entre um jogador e “a máquina” – o computador responsável por gerar os desafios, os inimigos, os obstáculos. Essa ainda é a visão dominante sobre jogos de videogame: ao pegar o controle nas mãos, logo já tentamos descobrir quais são os objetivos, os desafios e os critérios para ser considerado um vencedor dessa disputa. Por décadas, videogames foram sempre sobre vencer desafios, fosse com habilidade nas mãos, reflexos rápidos, memória sobre-humana ou inteligência para os quebra-cabeças.
Então alguém foi lá e pensou: se o que interessa nos jogos é o desafio, que tal eu criar um jogo com um desafio FODA PACARAI? É assim que nasce a nova nova série das segundas-feiras aqui no Pouco Pixel, a “FODA PACARAI”, com alguns dos jogos mais DIFÍCEIS e DESAFIADORES já concebidos, capazes de levar jogadores veteranos à loucura e elevar os capazes de vencer seus obstáculos ao status de LENDAS. É com um misto de admiração, ousadia e pavor que damos então o primeiro passo nessa jornada, rumo às garras cruéis e sedentas de sangue de “Silver Surfer”, para Nintendinho.
Criado em 1990, “Silver Surfer” é o filho SÁDICO de “Gradius” com “Mega Man”: é um jogo de navinha (por vezes “top down”, com a nave vindo de baixo para cima; por vezes “side scroller”, com a nave vindo da esquerda para a direita) em que existem várias fases disponíveis para serem acessadas de maneira não-linear, na ordem em que o jogador julgar mais adequada – e parte essencial da graça da coisa toda está em, como em “Mega Man”, encontrar a ordem capaz de tornar o jogo minimamente mais fácil de ser vencido.
Jogos de navinha costumam ser por definição muito difíceis, exigindo muito reflexo e memorização, e “Mega Man” fez escola com seus desafios extremos, inimigos que tomam vários tiros antes de morrer e fases com vários estágios diferentes. O filho dos dois, então, é um PESADELO: inimigos que aguentam muito dano, chefes difíceis, fases com vários estágios, mas tudo com o terrível adendo de que todo dano recebido é MORTAL. Qualquer mínimo deslize encerra sua jogatina e a fase começa inteira do início. Parece difícil o bastante pra você? E se eu disser que, como na maioria dos jogos de nave, não é permitido tocar em nenhuma parede do cenário, mas que o Surfista Prateado é ENORME de pé lá na sua prancha todo pimpão e que portanto desviar das barreiras é quase impossível? Já tá querendo desistir? Essa é a hora, então, que vem a inevitável pergunta: PRA QUE FAZER UM JOGO TÃO DIFÍCIL? E aí a gente tenta explicar:
1. NO PAIN, NO GAIN
Em sua origem, jogos de videogame são sobre desafios e a satisfação de vencê-los é o próprio objetivo em si. Não se vence os obstáculos dos videogames para receber um prêmio em dinheiro, para desbloquear arte conceitual do jogo, para ver um vídeo com um pedaço de história, etc. Vence-se o desafio simplesmente pela graça de vencê-lo: jogos são conflitos auto-impostos pelo jogador, aquela coisa infantil de “vamos ver se eu consigo” que é a mãe de tudo quanto é esporte. Se a satisfação está no simples fato de vencer um obstáculo, então a matemática é simples: vencer um obstáculo GIGANTE deve dar então uma satisfação GIGANTE. É com imenso TÉDIO que o jogador recebe o final de uma fase em que não foi desafiado; é com FOGOS DE ARTIFÍCIO que o jogador recebe o final de uma fase do “Silver Surfer”.
2. NÃO É IMPOSSÍVEL
No entanto, ninguém em sã consciência se diverte tentando resolver um desafio notoriamente IMPOSSÍVEL de ser vencido. Assim que o jogador perceber que o desafio não tem solução, o jogo vai pra lata do lixo. Precisa rolar então um processo fofo de CONFIANÇA entre jogador e game designer: o jogo precisa mostrar o tempo todo que ele é difícil mas possível de ser batido, e o jogador precisa confiar que o jogo não está SACANEANDO, que não está QUEBRADO, e que seu esforço no controle não está sendo em vão. Em todas as oito bilhões de vezes em que eu morro em “Silver Surfer”, sempre penso que eu poderia ter feito melhor. “E se eu tivesse tentado ir por baixo?”, “e se eu tivesse desviado do primeiro inimigo e só atirado no segundo”, “e se eu tivesse guardado uma bomba”, etc. É um processo de tentativa-e-erro que pode ser até lento e frustrante, mas que não pode em nenhum momento parecer verdadeiramente impossível: se isso acontecer, a frustração simplesmente leva o jogador a desistir da brincadeira. “Silver Surfer” é um jogo sofisticado que te dá as oportunidades para vencer: existem itens que melhoram o seu tiro, a possibilidade de atirar para frente, para trás, para cima e para baixo, e bombas que eliminam todos os perigos da tela. Mas esses recursos precisam ser usados com uma inteligência sobre-humana, porque tudo no jogo te mata com uma velocidade absurda, e esses itens precisam ser acumulados nas fases ligeiramente mais fáceis para tornar possível a vitória nas fases ~realmente difíceis~.
3. JOGO DA MEMÓRIA
O jogo acaba sendo uma enorme MEMORIZAÇÃO de soluções. A cada obstáculo vencido é preciso decorar os movimentos e posições necessárias para vencê-lo e partir para a descoberta de como vencer o próximo. Jogos muito, muito, muito difíceis possuem menos espaço para improvisação e para reflexos rápidos, e são mais sobre sua capacidade de lembrar da fase inteira de cor. Ou seja, são para jogadores que gostam de ter sua memória desafiada, o que é justo – mesmo que à primeira vista pareçam apenas jogadores que gostam de uma vida SADOMASÔ. Alguns gostam de reflexos, outros de puzzles, outros de jogos da memória. Tem pra todo mundo.
4. VIDA LONGA E PRÓSPERA
Pode parecer um truque barato, mas uma dificuldade INSANA é provavelmente a mais antiga prática de colocar água no feijão da indústria dos videogames. Jogos novos eram proporcionalmente mais caros na época dos cartuchos do que são hoje (e a gente ainda reclama), tornando muito difícil para um jogador médio ter muitos deles disponíveis. Quando a gente conseguia um jogo novo, tinha que SUGAR tudo que o jogo tinha disponível, tinha que fazer a experiência durar o máximo possível. Se o jogo fosse fácil, portanto, terminava rápido e o dinheiro parecia um investimento pior. “Silver Surfer”, nesse sentido, é o dinheiro mais bem gasto que um jogador pode sonhar: dá pra jogar por décadas e nunca chegar na tela final. São inúmeras fases diferentes, cada um com vários estágios dentro delas, um chefe para cada um desses pedaços, mudança de jogabilidade (de cima para baixo, depois de um lado para o outro), e uma riqueza de inimigos que vai de patos de borracha a dinossauros bípedes.
5. EU SOU RICA!
Vencer grandes desafios que exigem memória prodigiosa em uma experiência longa que pode levar décadas para ser inteiramente dominada não é para qualquer um. Isso quer dizer que os poucos capazes de vencer por completo seus obstáculos entram numa espécie de “elite”, um grupo de über-jogadores com direito de se vangloriar, exibir seus talentos e caçoar dos coleguinhas mais inaptos.
Hoje em dia existem os “troféus” ou “achievements” pra mostrar quão pica das galáxias você é em termos de vencer obstáculos em videogames, mas na época do “Silver Surfer” esses prodígios não eram devidamente admirados – pelo contrário, videogame era coisa de “nerd” e digno de preconceito (eu só não era jogado na lata do lixo porque, bem, eu não cabia). Pra mostrar que você era fodão era preciso tirar uma foto do seu feito (terminar “Silver Surfer”, por exemplo, e ver a cena cocô final) e mandar para alguma revista de videogame publicar, garantindo que você seria admirado pelos seus pares. Então jogos difíceis apresentavam essa possibilidade para um público constantemente excluído socialmente: a GLÓRIA.
“Silver Surfer” então é difícil mas com motivos. É uma experiência tão desafiadora que até HUMILHA o overpower Surfista Prateado, morto constantemente nas mãos de patos de borracha e ajoelhado pateticamente em sua prancha. Por isso é o jogo que estreia nossa série “FODA PACARAI”, e que te desafiará por anos a fio se você deixar. Segunda-feira tem mais, com uma série famosa que todo mundo ama odiar. Até lá!