Altered Beast
Lembro de ver um comercial da Sega na televisão quando eu era criança em que aparecia um ser humano se transformando em um lobisomem. Aquilo era espetacular, chocante, muito bem feito para os gráficos da época. Para mim, era um dos grandes atrativos para se ter um Mega Drive: poder jogar com um personagem que se transformava naquele lobo com cara de quem bebe sangue de crianças no café da manhã. O jogo em questão era “Altered Beast”, o cartucho que vinha junto com o Mega Drive brasileiro na época do lançamento, antes do Sonic correr pelo mundo e virar o cartucho padrão.
O jogo havia sido primeiramente lançado em arcades, mas foi escolhido para integrar o lançamento do Mega Drive por mostrar tudo que a Sega queria com o console: gráficos coloridos, pancadaria, velocidade na passagem das telas, e muita fantasia de poder masculina pré-adolescente com hormônios saindo pelas orelhas. De fato, “Altered Beast” acertava todas essas notas: os personagens principais começavam a jornada magrelos mas com muita porrada iam ficando mais e mais poderosos até se transformarem, numa animação não-interativa super colorida e de encher os olhos, em criaturas animalescas e desequilibradamente poderosas. A sensação de poder ao se tornar esses monstros e encher a tela com suas magias e golpes especiais era imensa, tornando os inimigos outrora complicados repentinamente em um bando de idiotas que morriam sem dificuldade. Passar pelas telas dizimando todo mundo era delicioso para as mentes da época, e o passeio genocida só terminava quando enfim o chefe da fase se apresentava, estabelecendo um desafio digno.
Trata-se sem dúvidas de um jogo escolhido a dedo para a Sega tentar seu plano de dominação mundial: mais uma vez temos aqui, como em ActRaiser, japoneses lidando de maneira meio estabanada com temas inteiramente ocidentais, tentando encontrar no cenário da mitologia grega algo mais universal que pudesse agradar aos diferentes mercados que a empresa tentava adentrar. Não por acaso, os responsáveis pelo jogo são um verdadeiro time de all-stars da Sega: Makoto Uchida (futuramente responsável por “Golden Axe” e “Die Hard Arcade“), Hirokazu Yasuhara (responsável por programar todos os jogos do Sonic) e Rieko Kodama (escritora do primeiro “Phantasy Star”).
No jogo, Zeus levanta um guerreiro de sua tumba aos gritos de “RISE FROM YOUR GRAVE” para que ele vá recuperar Athena, sequestrada por um vilão que eu não faço ideia de quem seja, mas que espera o jogador ao fim de todas as fases com um novo monstro e a marcante frase “WELLCOME TO YOUR DOOM” – que um chip de som vagabundo e meus ouvidos infantes faziam soar como “wellcome to glaucoma”, como se o vilão desejasse ao seu inimigo uma cegueira iminente. De volta dos mortos com suas roupinhas gregas intactas, o personagem deve então matar uma série de criaturas tiradas diretamente de uma mixórdia cultural, incluindo lobos, grifos, zumbis e um punhado de demônios folclóricos japoneses. Porque a Grécia, pelo jeito, é terra de ninguém.
A graça de matar esses inimigos cruzadores de fronteiras era que eventualmente deixavam para trás um item que aumentava a força física do personagem no maior estilo Hulk: mais músculos surgiam, menos roupa sobrava. Meio que sem saber, em sua sede por força e poder, milhares de criancinhas tinham como grande objetivo em “Altered Beast” deixar o personagem o mais nu possível.
O engraçado é que embora os músculos cresçam de maneira acelerada, a cabeça do personagem vai parecendo cada vez mais diminuta – pode ver que cabe fácil, fácil umas duas cabeças dentro daquela esfera que podemos chamar de ombro. Talvez por isso, apesar da enorme força temos um combate um tanto truncado. É possível desferir socos e chutes, mas ambos não possuem muito alcance mesmo depois que os anabolizantes façam com que bolas de fogo azul saiam dos membros a cada golpe. Além disso, é preciso golpear embaixo e em cima para lidar com inimigos de diferentes alturas e que muitas vezes correm rápido o suficiente na sua direção para que não seja fácil decidir a tempo.
Depois de já ter músculos pulando do corpo, o próximo item encontrado finalmente transforma o personagem em sua figura animalesca, não sem antes a presença da animação bacanuda. Só então é que o grande vilão, que aparece durante a fase várias vezes, aceita enfrentar o jogador – deixando um monstro pra lutar no seu lugar, claro. As batalhas contra esses chefes são muito divertidas, chance de usar os poderes recém-adquiridos com a forma animal em um combate desafiador, já que os inimigos convencionais não dão nem pro cheiro depois da transformação. Ao fim da fase, o vilão com voz de chip vagabundo rouba todos os seus itens, devolvendo o personagem à sua forma magrela inicial, e fazendo a busca por anabolizantes retomar na fase seguinte – onde outra transformação acontecerá, mas dessa vez com uma nova forma animalesca. Ao longo do jogo existem transformações em lobo, dragão, urso, tigre e lobo de novo, porque aí acabou a criatividade. Diz a lenda que na versão porca de Nintendinho dá pra se transformar em um tubarão, mas eu nunca ousei arriscar aquela meleca.
Na ânsia infanto-juvenil por me tornar essas criaturas poderosas e dar surras nos chefes de cada fase, nunca me concentrei muito na parte nitidamente homo-erótica de toda essa empreitada. Mas a verdade é que homens semi-nus exibindo seus músculos, ficando de quatro em suas formas animais, virando ursos e ao final do jogo resgatando a mocinha sem sequer se aproximar dela para um aperto de mão deveriam ser bons indícios de que “Altered Beast” não eram um jogo qualquer.
Ao que parece, “Altered Beast” é mais um daqueles casos de culturas muito distintas se perdendo na tradução. No Japão, é relativamente comum achar graça nesse exagero fisiculturista e relacioná-lo, comicamente, com personagens homossexuais. Jogos que exploram essa questão, inclusive ligando-a com outros exageros estéticos, criando um resultado ao mesmo tempo brega e fascinante, são chamados por lá de “baka-ge”, algo como “jogo imbecil”. Talvez por “Altered Beast” ser um dos primeiros exemplares deste gênero bizarro, é também um dos mais comedidos. A série de jogos de nave “Cho Aniki”, criada em 1992 e com continuações para Super Nintendo, Saturn e Playstation 1 e 2, leva toda a sátira homo-erótica a outros patamares (e, por isso, nunca foi lançada fora do Japão). Para se ter ideia, as “naves” da série são na verdade personagens muito parecidos com os de “Altered Beast” que matam seus inimigos usando seu “raio branco masculino” através de fortes movimentos pélvicos (entenda a coisa toda como quiser).
Para o Japão, trata-se de puro humor, sem motivo algum para censura. Tanto é que outro jogo do mesmo gênero, “Muscle March”, saiu para o Nintendo Wii japonês – um console notoriamente voltado para o público infantil naquelas bandas. Vale a pena parar a sua vida para dar uma olhada no trailer do jogo, que lhe mostrará o minuto e meio mais bizarro da história dos videogames. Os jogos da série “Katamari” também seguem essa linha através do personagem”King of All Cosmos” e seu famoso fisiculturismo afeminado.
Tendo essa questão cultural em vista, “Altered Beast” ganha novas cores: além de toda a fantasia de força e poder, há também um lado cômico, uma estética propositalmente exagerada e brega, e um riso de canto de boca implícito ao caráter erótico da coisa toda, algo que passou totalmente despercebido pelo ocidente. Na nossa memória, alheio a tudo isso, “Altered Beast” será sempre apenas um jogo pelo qual passamos na tentativa de assistir a umas várias transformações maneiras, matar uns monstros bizarros, e enfrentar de peito aberto toda possibilidade de um glaucoma.
Curiosamente, o melhor vídeo possível para mostrar toda essa jornada é, assim como o próprio “Altered Beast”, cheio de esteroides. Trata-se de um grupo de jogadores que utiliza todos os recursos disponíveis para quebrar recordes de tempo nos jogos: emuladores, save states, possibilidade de jogar em câmera lenta, etc. É tipo uma Olimpíada dos anabolizantes, em que é possível acabar “Altered Beast” em cerca de 5 minutos. Imperdível, especialmente o sexo entre os ursos após a batalha contra um dos chefes: