Space Harrier
A Sega era uma das grandes forças do mercado japonês de arcades dos anos 80 e um dos maiores responsáveis por isso era Yu Suzuki, líder de um dos estúdios internos da Sega focado apenas em revolucionar o conceito de arcades da época. Foi de suas mãos que em 1985 saiu “Hang-On”, simulador de corrida de motos que foi o primeiro arcade a usar o movimento do jogador para controlar as ações na tela – e o pioneiro de qualquer jogo controlado sem auxílio de um controle convencional. Ainda no mesmo ano foi a vez de “Space Harrier”, um dos primeiros arcades com gráficos que tentavam simular uma visão 3D, e o primeiro a ter uma cabine que se mexia de acordo com os movimentos de um joystick. Ambos os jogos criaram a tendência de arcades que se moviam, transformando a indústria de maneira irremediável, e forçando os jogos na direção de gráficos 3D cada vez mais convincentes.
Mesmo quando passou a criar consoles caseiros, a Sega manteve suas origens no arcade como parte central de sua identidade. Do Master System em 1985 ao Dreamcast em 1999, a Sega sempre se esforçou para que seus videogames trouxessem a experiência dos fliperamas para a casa dos jogadores – até mesmo alguns jogos criados exclusivamente para seus consoles de mesa possuíam muitas vezes o “modelo” de arcade, com sessões de jogo curtas e até contagem regressiva para que o jogador resolva continuar após a morte do personagem. Faz bastante sentido, então, que um dos carros-chefe do Master System tenha sido a possibilidade de se jogar “Space Harrier”, sucesso total dos arcades, no conforto do lar – e sem ter que gastar milhões de fichas, que o jogo vicia porque a droga é pesada.
A versão de Master é notoriamente bem meia-boca se comparada com a versão original em termos de som e gráfico, mas ficou muito popular especialmente no Brasil porque, bem, era o que tinha pra hoje. Na falta dos fliperamas, muito difíceis de encontrar por aqui, a versão de Master System mais do que quebrava um galho. Aliás, a mesma lógica se aplica para explicar o sucesso do console da Sega no Brasil: como era praticamente impossível encontrar o Nintendinho original nessas bandas, já que a Nintendo não tinha qualquer representação tupiniquim, o jeito era apelar para os genéricos ou para o Master mesmo, presente de maneira legítima no Brasil através da Tectoy. O console era uma espécie de plano B de todo mundo aqui, mas um que acabou vendendo horrores. Fracasso comercial envergonhante no Japão e nos Estados Unidos (onde não chegava a ter 5% do mercado), acabou se saindo bem apenas em parte da Europa e aqui no Brasil, onde ganhou até jogos nacionais (como esquecer “Sapo Xulé contra os Invadores do Brejo”) e várias traduções de jogos gringos.
Não que o console da Sega fosse ruim, longe disso – pra mim ele já valia seu preço só pelas conversões dos jogos de arcade assinados pelo Yu Suzuki. O problema é que quando o Master System nasceu, o mercado de consoles de mesa japonês já estava dominado pela Nintendo e sua política safada de só aceitar jogos para sua plataforma caso eles fossem exclusivos. Tendo chegado tarde para a festa, mesmo sendo tecnicamente mais poderoso o Master não recebeu apoio nenhum das produtoras japonesas, o que na década de 80 significava não receber apoio nenhum de ninguém. A solução desesperada da Sega foi pegar seu próprio time de desenvolvedores e trancá-los três meses num estúdio para colocar nas lojas o máximo de jogos possível e mostrar que o console era viável. É por isso que a versão de “Space Harrier” de Master System é tão capenga, com uns pixels fora de lugar e umas bordas de objetos recortadas porcamente: feita em três meses para rodar numa tecnologia inferior, não dava pra esperar nenhuma maravilha. Ainda assim, todo o essencial que tornava “Space Harrier” nos arcades um jogo inesquecível estava lá no Master: os gráficos em quase-3D, a velocidade, o tiroteio desenfreado e o design de mundo e de monstros mais regado a LSD que já se viu.
Em “Space Harrier”, ao contrário dos outros jogos do gênero na época, o jogador controla um personagem humano e não uma nave espacial. O personagem, visto sempre de costas, possui um baita trabuco nas mãos que funciona ao mesmo tempo de foguete, o que permite voar livremente pelo cenário para desviar dos inimigos e atirar para todos os lados. Ao tocar o chão, o personagem deixa de voar e passa a correr com suas próprias pernas, o que na prática dá na mesma – ele corre na mesma velocidade com que voa com seu foguete! – mas passa uma sensação muito bacana de velocidade constante e interação com o cenário. A velocidade se dá principalmente porque o jogo é um “rail shooter”, ou seja, um jogo de tiro que está preso num trilho de trem invisível. Isso quer dizer que o jogador não pode acelerar ou frear e nem mudar o percurso: o personagem segue sempre em frente, com a mesma constância, e cabe ao jogador apenas mover-se para os lados, para cima e para baixo atirando durante o trajeto.
Esse ritmo frenético soma-se aos inimigos e obstáculos que não param de surgir na tela para fazer com que não haja tempo para respirar. Se o jogador se deixar levar na velocidade da jogabilidade, talvez nem perceba que o mundo de jogo e as coisas que ele está matando aparentemente não fazem sentido algum. O fato de que as referências que compõe todo o visual são inteiramente desconexas e descabidas certamente é o que torna a experiência tão fascinante e marcante. As cores vibrantes e psicodélicas só ajudam a reforçar essa sensação inegável de viagem de ácido. Se em dado momento o jogador pode estar desviando de colunas gregas enquanto atira em dragões chineses, no minuto seguinte pode enfrentar cabeças da Ilha de Páscoa com pirâmides e estações espaciais compondo o cenário ao fundo.
Nas 18 fases do jogo, encontramos árvores em formato de cone, plantas metálicas, discos voadores, alienígenas humanóides, alienígenas nem um pouco humanóides, demônios folclóricos, uma divindade com influências hindus, cabeças flutuantes, vinhas com rosto, cogumelos do tamanho de um carro, robôs enormes, castelos voadores, esqueletos gigantes de rinocerontes voadores, mamutes de um olho só, e um sem número de outras criaturas que eu sequer sou capaz de descrever porque não parecem com nada que eu já tenha presenciado em vida. Só vendo para crer:
Talvez a parte mais assustadora seja o fato de que após algum tempo de jogo, toda essa diversidade psicotrópica comece a criar uma certa unidade na minha cabeça, como se essa mistura aleatória de fantasia, ficção científica e feira de ciência escolar radioativa acabasse se tornando uma identidade coesa. O planeta, chamado pelo jogo de “Dragon Land”, começa a não parecer mais tão absurdo depois de umas MUITAS sessões de jogo, ao ponto que começo a imaginar: como será a relação desse ecossistema, desses mamutes de um olho só e desses esqueletos de rinoceronte quando não tem um atirador maluco voando por todos os lados?
Ao terminar o jogo, surge um texto épico sobre como dizimar todas essas criaturas era essencial para destruir o plano de algum imperador maligno, mas que na verdade tudo isso pode ter sido não apenas sua simples sede de destruição, mas um passo maior em sua rede de intrigas pelo universo com a intenção de tolher a liberdade de todos os indivíduos. Sei. Não é bonitinho quando os escritores de um jogo tentam se levar a sério mesmo com cabeças flutuantes da Ilha de Páscoa ao lado de robôs gigantes em discos voadores?