Ninja Gaiden
No final dos anos 80 os japoneses começaram a perceber que “ninjas” estavam ficando populares nos Estados Unidos. Quer dizer, estavam ficando populares aquilo que os americanos entendiam por “ninjas”, claro. No ocidente temos essa imagem deles como guerreiros super-heróis, escondendo suas identidades secretas por trás da máscara, usando sua espada em conjunto com vários outros apetrechos, magia, técnicas furtivas e artes marciais. Ou seja: na nossa cabeça, ninjas são a mistura do Homem-Aranha com o Batman, com um leve toque de Bruce Lee porque os filmes de artes marciais estavam no auge de sua popularidade. O público gostava tanto dessa compreensão de ninjas como super-heróis marciais que as Tartarugas Ninjas tornaram-se um desenho animado de enorme sucesso no mundo inteiro (e um jogo foda de Nintendinho, assunto de outra hora).
Só que nada disso fazia sentido para o público japonês. Se apontamos tantas vezes aqui as dificuldades da indústria de jogos do Japão de compreender os temas ocidentais de que eles se apropriam (como em “Altered Beast“, “ActRaiser” e “Metal Gear Solid“), isso não quer dizer que os Estados Unidos não tivessem exatamente a mesma dificuldade de entender temas tradicionalmente japoneses tanta na criação quanto na tradução de jogos. Para o Japão, ninjas são guerreiros feudais, indissociáveis de seu momento histórico. Não são vistos como heróis mas como mercenários sem honra, em contraposição aos valorosos e honrados samurais. Ao invés de grandes códigos morais, ninjas matavam por dinheiro usando truques baixos para dissimular sua ausência de técnica na espada, sua falta de treinamento, de professores e de materiais adequados. Se os samurais são modelos formadores da identidade japonesa, os ninjas são seu contraponto, fascinantes apenas porque fora da moralidade, incompreensíveis, misteriosos em seu comportamento caótico.
Ainda assim o fenômeno de popularidade dos ninjas nos Estados Unidos podia ser aproveitado pelos estúdios japoneses, desde que soubessem brincar um pouco com a visão totalmente distorcida dos ocidentais. Vários jogos com personagens ninjas já existiam na época, mas por se passarem na época feudal japonesa acabavam alienando o público que desconhecia as características únicas da história do país. Foi então que a Tecmo deu a Hideo Yoshizawa a função de criar um jogo de ninjas que agradasse o público dos Estados Unidos, onde o Nintendinho vendia a granel, mas sem irritar ou desrespeitar o público japonês no processo. Tarefa quase impossível essa de mediar o choque cultural entre ocidente e oriente, cercado por preconceitos e falsas compreensões. É por isso que “Ninja Gaiden”, a criação de Yoshizawa que foi enorme sucesso dos dois lados do planeta, é uma obra merecedora do nosso selo máximo “Pixel das Galáxias”!
A grande sacada de Yoshizawa na construção da imagem do ninja foi tirar as duas culturas envolvidas de suas zonas de conforto. Para horror do seu time de programadores, que não entendiam nada do que estava acontecendo, Yoshizawa colocou o personagem Ryu Hayabusa como um ninja contemporâneo, enfrentando pistolas e metralhadoras numa trama policial de escala global, e com sua roupa ninja rasgada à altura dos ombros para mostrar os músculos tão importantes para os heróis americanos. Por outro lado, o jogo carregava em temas difíceis para o público ocidental, como o folclore e a religião do período feudal, forrando a história com demônios de inspiração xintoísta, além de pequenos detalhes com a intenção de tornar Ryu uma espécie de “samurai dos pobres”, como um nobre código de honra, uma forte relação familiar e uma espada herdada de seu clã – é quase como se de ninja ele só tivesse a vestimenta.
Aos poucos esse personagem inusitado foi ganhando um mundo igualmente estranho, com um design capaz de misturar a alta tecnologia militar dos desenhos dos “Comandos em Ação” e dos filmes cyberpunk da época com demônios, magia e templos antigos em ruínas. É um mundo que não faz sentido NENHUM, mas cuja mistura é fascinante e causa ao mesmo tempo estranheza e conforto. Um ninja correndo entre colunas destruídas no meio da FLORESTA AMAZÔNICA enquanto mata bruxas xintoístas, punks usando granadas como malabares, super-soldados com lança-mísseis, motoqueiros com porrete e boxeadores de sunga? Tinha tudo para ser um trem descarrilhado se não fosse a arte impecável com que todos esses elementos surgem na tela, dando a eles uma identidade única – algo como um XINTO-PUNK, como gosto de chamar.
Essa ambientação é explorada não apenas no design das fases e dos inimigos mas também na história, contada pela primeira vez através de uma série de cutscenes – cenas animadas não interativas – que acontecem ao longo do jogo. O normal para a época é que um jogo de ação tivesse alguma cena inicial para explicar o cenário ou a motivação do jogador e depois uma cena final que terminasse a história e servisse como prêmio por chegar ao fim do desafio. Em geral introdução e final eram apenas telas estáticas, muitas vezes apenas escritas, e muitos jogos terminavam com um simples “the end” ou com uma mensagem de parabéns. Mas Yoshizawa foi ambicioso: julgava ser capaz de criar uma trama atraente para ocidentais e orientais, e para isso queria misturar valores japoneses com os filmes policiais americanos, as tomadas de câmera estreitas dos filmes de Akira Kurosawa com o clima noir de Alfred Hitchcock. Tudo, claro, dentro de um JOGO 8-BITS DE NINTENDINHO. Para tornar sua visão megalomaníaca possível, criou cerca de 20 minutos de cutscenes, às vezes bem pouco animadas, mas suficientes para mostrar as reações dos personagens aos diálogos e uma ou outra cena de ação.
Ligar “Ninja Gaiden” nos anos 80 e ser presenteado com um duelo ÉPICO de dois ninjas sob a luz da lua era inacreditável. Jogar a primeira fase já ganhava um peso diferente, uma sensação de ambientação e de motivação; chegar ao final do estágio tinha um sabor especial por saber que uma nova cutscene continuaria a narrativa. Aquele mundo de jogo bizarro que ia das ruas de uma cidade industrial a ruínas amazônicas parecia menos aleatório porque, entre as fases, cenas narrativas explicavam o deslocamento do personagem para as novas localidades.
Se já critiquei aqui, falando de “Metal Gear Solid“, a confusão entre videogame e cinema que acaba nos obrigando a passar por momentos de NENHUMA jogabilidade, é preciso também saber louvar a tentativa de Yoshizawa de contextualizar seu mundo de jogo, mostrar a densidade de seus personagens, e ousar ainda nos anos 80 a ter um herói que é mais do que um amontoado de pixeis. Ninguém imaginava que videogames poderiam ser uma ferramente narrativa desse porte e esse primeiro passo mudou para sempre a história. Não havia ainda a possibilidade de que a narrativa acontecesse ENQUANTO jogo, então Yoshizawa comeu pelas beiradas – o resto dos game designers que fazem a mesma coisa até hoje só vão na onda, sem repensar as possibilidades da mídia. Com isso, “Ninja Gaiden” aumentou o grau de expectativa de toda uma geração que queria então histórias interessantes em seus jogos de ação, personagens mais profundos e um mundo de jogo que não fosse “a fase do gelo”, “a fase da água”, “a fase do fogo” só porque sim – era preciso ao menos inventar uma desculpa para visitar esses lugares e chegar ao final deles.
Mas “Ninja Gaiden” não é um “Pixel das Galáxias” só pela sua ambientação e narrativa – como JOGO, ele não seria NADA sem uma jogabilidade suprema. Mais do que isso: “Ninja Gaiden” tem uma jogabilidade fantástica associada a um DESAFIO ABSURDO, tornando a experiência ainda mais memorável, longeva e aumentando a recompensa por terminar o jogo a níveis ÉPICOS. É por ser um dos jogos mais bacanas e também mais difíceis da história que “Ninja Gaiden” entra tanto para nossa lista de “Pixel das Galáxias” quanto para nossa série “Foda pacarai”.
Apesar de ser um jogo de ação forrado de inimigos, não se trata de um “beat ‘em up” em que o objetivo é matar todo mundo da tela para ter permissão de seguir para a próxima fase. O que temos aqui é um jogo de plataforma como “Super Mario Bros.” ou “Mega Man“, mas em versão ultra-acelerada, com muitíssimos inimigos e perigos por todos os lados. É possível jogar de maneira quase furtiva, desviando da imensa maioria dos inimigos e chegando ao final da fase sem matar quase ninguém, apenas pulando de uma plataforma para a outra e escalando as paredes – aliás, uma das sacadas do jogo. Mas a velocidade do personagem principal em sua corrida e a quantidade de inimigos que surgem como obstáculo levam o jogador a um ritmo frenético de matar todo mundo que surge pela frente enquanto tenta-se alcançar as plataformas na melhor ordem possível.
A dificuldade LENDÁRIA de “Ninja Gaiden” – talvez o jogo mais difícil de sua geração, e além – vem do fato de que os inimigos não apenas causam muito dano, mas também arremessam o personagem para longe com o impacto, fazendo com que ocorram quedas entre as plataformas rumo à morte certa. É preciso passar por essas plataformas sem ser tocado, mas a quantidade de inimigos é tão ENORME, e o padrão de movimento deles é tão abrangente, que se movimentar adequadamente é um exercício de memória, precisão e paciência – mas não MUITA paciência, porque o jogo ainda tem a CRUELDADE de resetar os inimigos da tela se você der passos para trás, forçando o ninja de braços de fora a correr para a frente o tempo inteiro, como se não houvesse amanhã.
Yoshizawa era um mestre em criar RITMO, colocando cada inimigo e cada item nas fases com uma precisão milimétrica. Os itens que ajudam o jogador, como magias de fogo, piruetas ou estrelas ninja, não surgem na fase de maneira aleatória como estamos acostumados – o diretor escolheu com CARINHO qual item surgiria ali para você naquele momento da fase, tendo já em mente uma tática e uma abordagem específicas para vencer os obstáculos na velocidade doidona com que se apresentam. Foi só depois do jogo ter sido lançado que Yoshizawa descobriu que os jogadores não percebiam isso e, pior, ficavam guardando seus itens o máximo possível como é de praxe na maioria dos jogos, tornando alguns obstáculos que ele desenhou IMPOSSÍVEIS para o jogador mão-de-vaca que não usa o item assim que o obtém. Ou seja, além do jogo ser pensado pra ser MUITO difícil, a gente ainda joga errado. Mas quem sabe o que está fazendo e faz uso dos itens certos tira “Ninja Gaiden” de letra, fechando o jogo em 10 minutos (como dá pra ver abaixo) e sendo presenteado com a belíssima cena final: Ryu Hayabusa tem o pai morto, mata o vilão demoníaco, beija a mocinha SEM AINDA SABER O NOME DELA, aí pergunta o nome da garota, e depois assiste sem piscar, abraçadinho-fofo, à destruição de um templo de valor INESTIMÁVEL para a história humana. Épico. Rola a música foda, sempre com aquela bateria inesquecível. Escorre a lagriminha de canto de olho. E cresce a certeza de que o próximo jogo que só te der um “THE END” você vai tacar pela janela.