Metal Gear Solid
Saído diretamente do miraculoso ano de 1998 que viu pérolas como “The Legenda of Zelda: Ocarina of Time”, “Starcraft”, “Half-Life”, “Grim Fandango“, “Pokémon“, “Fifa 98” e muitos outros, “Metal Gear Solid” é um dos jogos que mais marcaram sua geração e um dos jogos mais influentes de todos os tempos, sendo responsável por inventar o gênero “stealth”, em que o objetivo é escapar o máximo possível dos confrontos passando despercebido pelos inimigos. “Então por que raios ele não é um PIXEL DAS GALÁXIAS?”, você pergunta já ameaçando me tacar um tijolo. Pois bem: é que “Metal Gear Solid” é uma experiência tão esquizofrênica que quase 20 anos depois eu ainda não sei como lidar direito com seus erros e acertos.
Hideo Kojima, responsável por “Metal Gear Solid”, passou um bom tempo de sua vida querendo ser diretor de cinema. Quando entrou na indústria de videogames para criar jogos de MSX pela Konami, não sabia praticamente nada de programação e sua função era puramente criativa, em geral ligada à direção. Não é estranho, portanto, que os jogos de Kojima tenham tentado ser bastante cinematográficos – desde os primeiros “Metal Gear” no MSX, passando pelo fantástico adventure “Snatcher” que é quase um filme interativo, e atingindo o auge desse modelo na série “Metal Gear Solid” nos consoles da Sony. Essa sua relação com o cinema trabalha ao mesmo tempo contra e a favor de suas obras: por um lado, ajuda a focar na história e criar uma narrativa; por outro lado, acaba misturando duas mídias muito distintas e com isso atrapalhando ou inviabilizando boa parte da jogabilidade, que é a parte mais importante dos JOGOS.
É verdade que “Metal Gear Solid” chocou o mundo ao ser lançado porque ninguém imaginava que uma experiência tão cinematográfica, equiparável aos melhores filmes de espionagem de Hollywood, fosse possível no mundo dos videogames. Mas a pergunta que não quer calar até hoje é a seguinte: é INTERESSANTE para quem que experiências tão cinematográficas sejam possíveis nos VIDEOGAMES? A obra de Hideo Kojima abriu as portas para jogos que eram cada vez menos jogos – justamente o motivo pelo qual às vezes temos que olhar para o SÉCULO PASSADO, em busca de poucos pixeis, para encontrar jogabilidade genuína.
“Metal Gear Solid” tem longas cutscenes (cenas cinematográficas não-interativas) e muitas horas de diálogo do personagem principal com sua equipe de apoio através do seu reloginho comunicador, de modo que o ideal é soltar o controle e agarrar a pipoca sem peso na consciência. Os jogos seguintes da série mantém a mesma dinâmica, chegando ao ponto de “Metal Gear Solid 4”, de PS3, ter 8 horas – que é a duração de muito jogo médio por aí – só de cutscenes.
Ficar assistindo sem interagir com o que ocorre na tela era algo impensável para o próprio conceito de videogames, mas foi colocado no imaginário popular em grande parte com o sucesso de “Final Fantasy VII”, que presenteava o jogador após algumas horas de combates aleatórios com alguma cutscene com gráficos em computação gráfica, ou seja, bem mais bonitos do que os polígonos usados para o visual da parte jogável. Mas de certa maneira, esse tipo de abordagem era, se não desejável, ao menos compreensível dentro de RPGs eletrônicos e sua origem como jogos de texto: você lê uma descrição da história, dos personagens e do cenário, e só então decide suas ações através de comandos de texto ou de opções pré-determinadas. “Final Fantasy” era só uma versão anabolizada do mesmo conceito. “Metal Gear Solid”, no entanto, usa a mesma dinâmica para um jogo de ação e de muito menor duração, o que certamente causa uma grade estranheza – e influenciou grande parte dos jogos que vieram após seu enorme sucesso comercial.
Só que a obra de Hideo Kojima não é nem um pouco consistente, mesmo na parte das cenas não-interativas. Ao contrário de “Final Fantasy VII”, em “Metal Gear Solid” as cutscenes são geradas pelo sistema em tempo real, com os mesmos gráficos do restante do jogo. O que quer dizer que, em alguns raros momentos, Kojima experimenta com a possibilidade de JOGAR enquanto ocorre a cutscene, seja tendo que passar despercebido enquanto uma centena de soldados assistem a uma palestra, seja simplesmente adentrando a base militar enquanto os créditos iniciais do jogo ainda rolam pela tela, por exemplo. Nesses momentos temos, aí sim, experiências de jogabilidade INESQUECÍVEIS, tornadas ainda mais deslumbrantes pelo visual inteiramente 3D – em uma época ainda presa aos cenários pré-renderizados introduzidos por “Alone in the Dark” – que consegue impressionar até hoje. É um dos raros casos em que a direção de arte permitiu que polígonos envelhecessem bem, obrigado.
A inconsistência de “Metal Gear Solid” não se limita apenas à relação com cenas interativas e não-interativas, no entanto. Hideo Kojima insistiu, durante o longo processo de encubação e produção de sua obra-máxima, que primaria pelo realismo e pela simulação. Ele e sua equipe visitaram bases militares, fizeram treinos com armas de fogo de alto calibre e criaram um visual de alta fidelidade e cheio de texturas, sem paralelos com os jogos da época. Mas aí, quando você passa a controlar o jogo, entra em cena toda a veia brechtiana de Hideo Kojima: o jogo não para um segundo de te lembrar que ele é um jogo. Itens gigantes flutuam no belo espaço 3D como se fossem cerejas do Pac-Man; a jogabilidade de se esconder e aguardar um tempo até que você seja esquecido pela segurança tem elementos de jogos de fliperama; guardas alertados pela sua presença recebem pontos de exclamação no alto de suas cabeças; o chefe comenta sobre os outros saves de jogos da Konami que você guarda na memória do videogame; e até a chocante e brutal CENA DE TORTURA exige que você aperte botões rapidamente como se estivesse jogando um mini-game qualquer – e o torturador alerta que, caso você use um controle turbo para não cansar seus dedos, ele SABERÁ que você está roubando. As constantes referências que o jogo faz ao fato dele ser um jogo exigem que o jogador pense para fora da jogabilidade e para dentro do mundo real, por exemplo tendo que olhar na caixa do jogo para descobrir uma pista impossível, ou a LENDÁRIA sacada de ter que trocar o seu controle de entrada no videogame para que o inimigo pare de ler sua mente e adivinhar os seus comandos.
Nesses momentos é que Hideo Kojima é um game designer de verdade, explorando os limites da jogabilidade e da interatividade, questionando de maneira hilária as fronteiras do jogo e da vida – o fato de que tudo isso acontece num visual que supostamente tenta ser ultra-realista é que não me entra na cabeça. O jogo tenta levar super a sério suas partes jogáveis de espionagem, enquanto soldados correm com seus pontos de exclamação na cabeça e você se esconde em caixas de papelão. A linha entre o humor e a seriedade, a simulação e o arcade, nunca parecem bem delimitadas – sinto o tempo todo estar jogando dentro do SONHO NIPÔNICO de um ESQUIZOFRÊNICO.
Também colabora pra essa sensação de SONHO MANICOMIAL aquele choque de culturas que encontramos toda vez que as empresas japonesas tentam falar de assuntos notoriamente ocidentais – já comentamos isso em “ActRaiser” e em “Altered Beast“, por exemplo. O que temos aqui é a leitura japonesa das tramas de espionagem ocidentais ambientadas na Guerra Fria, o que faz com que os vilões – cada um com uma habilidade especial, com um uniforme específico e com suas frases de efeito próprias – pareçam mais com inimigos dos POWER RANGERS. Até os momentos mais sérios da trama acabam causando uma risadinha incontida porque os diálogos soam como uma cópia de uma cópia de uma cópia, um pastiche, a versão NARUTO de um romance melodramático com mais reviravoltas bregas do que qualquer novela mexicana em que o SBT já tenha colocado seus dedinhos. Para alguns essa estranheza funciona pelos efeitos cômicos, para outros funciona porque são fãs de desenhos japoneses em que até os jogadores de futebol possuem habilidades ridiculamente poderosas como CHUTES DO TROVÃO ou algo do gênero. Pra mim, essa estranheza gera apenas estranheza mesmo: não faço ideia de onde me posicionar no meio de tanto choque cultural, cutscenes que às vezes duram uma hora e às vezes sem aviso me deixam participar, e jogabilidade realista que de repente faz piada de si mesma caixas de papelão adentro.
“Metal Gear Solid” não é consistente, não faz sentido e talvez seja simplesmente mais do que eu possa digerir, mas não dá pra negar: quando o jogo deixa de ter CERTEZA de que é um filme e tem a coragem de ter CERTEZA de que é um jogo, ele o faz com uma convicção e habilidade que poucas vezes foi alcançada na história dos videogames – mesmo quando te força a largar o controle e pensar pra fora dos limites da televisão.