Half-Life
Ao contrário de outras mídias, videogames exigem um acordo implícito de confiança entre o jogador e os criadores do jogo para funcionar. Se eu der uma de rebelde no cinema, plantar bananeira e me negar a olhar para a tela, o filme continua passando sem que o meu boicote interfira em sua narrativa. Mas se eu me negar a seguir as instruções e os objetivos propostos por um jogo de videogame, se eu me rebelar e escolher ficar correndo contra uma parede ou girando em volta do próprio eixo, o jogo torna-se subitamente quebrado, deixa de prosseguir – eu terei ESTRAGADO TUDO. O acordo implícito, então, é o seguinte: o jogador se compromete a seguir razoavelmente bem o que o criador do jogo propõe como objetivo e aí todo mundo sai feliz da experiência.
O problema é que quanto mais liberdade o criador coloca em seu jogo, mais esse acordo corre o risco de ser quebrado. Um jogador pode acabar tendo uma ideia que o criador não previu, tentando ir parar num cenário que não está programado (e ficando preso no limbo no processo); pode fazer algum objetivo fora da ordem prevista e tornar o jogo ridiculamente fácil ou então quebradamente difícil; pode deixar de fazer alguma coisa óbvia e, mesmo assim, o jogo assumir que essa coisa foi feita, quebrando a lógica do jogo; etc. Quanto mais liberdade, maiores as chances do jogador sair dos trilhos e o jogo simplesmente QUEBRAR. É por isso que a maioria dos game designers tentam ser ultra-controladores: colocam um objetivo de cada vez em ordem linear, enfiam barreiras invisíveis em todo lugar pra te impedir de ir onde não deve, só te deixam entrar em alguns cenários usando um item necessário para o restante do jogo, e quando precisam que alguma coisa da história aconteça eles NÃO deixam isso nas mãos dos jogadores – vão logo enfiando um filminho lá pra você sentar e assistir bem quietinho, sem ter a chance de estragar nada.
Mas eis que o glorioso ano de 1998 (aquele ano MÁGICO que gerou “Metal Gear Solid“, “StarCraft”, “The Legend of Zelda: Ocarina of Time”, “Grim Fandango“, “Fifa 98“, “Radiant Silvergun” e a versão em inglês de “Pokémon“) nos deu um dos mais importantes exercícios de liberdade (e confiança) ao tentar contar uma história: trata-se de “Half-Life”, primeiro jogo da Valve Software, e o responsável por como os jogos de tiro em primeira pessoa são até hoje.
O que “Half-Life” faz de mais inovador é não ter nenhuma cutscene, ou seja, não ter nenhuma cena não-interativa durante toda a duração do jogo, e ainda assim tentar contar uma história complexa com muitos diálogos, personagens não-jogáveis e momentos pré-determinados. Em “Half-Life” o jogador sempre está no controle do personagem principal não importa o que aconteça. Ao andar pelos corredores do enorme laboratório em que se passa o jogo, cientistas conversam com você, soldados te cumprimentam, ordens são dadas, mas você pode continuar se movendo e jogando mesmo durante a fala de qualquer um dos personagens. A sacada está no fato de que todo mundo que fala com você em tempo real olha na direção dos seus olhos, então se você se mover para um lado ou para o outro, o personagem acompanhará esses movimentos para tentar manter a cena acontecendo. Pode parecer simples, mas é algo verdadeiramente revolucionário porque não permite que o jogador saia da pele do personagem principal nem por um segundo (mesmo que no caso de “Half-Life”, esse personagem principal – chamado Gordon Freeman – seja só uma casca OCA e sem graça, que não fala nenhuma palavra e nem tem qualquer traço de personalidade.)
Quando um soldado é morto por um alienígena numa sala à sua frente em uma cena pré-programada, por exemplo, o fato de que você ainda mantém o controle do personagem durante a sangria cria um estado de tensão enorme: “eu deveria fugir, atirar, me esconder, voltar para a sala anterior ou avançar correndo?”, e tudo isso acontece na sua cabeça DURANTE a cena, não depois. Se você tiver cagaço e fugir assim que o alienígena aparecer, talvez nem veja o soldado sendo morto por ele.
Esse é o grande perigo dessa decisão ousada de “Half-Life”: o jogador tem muito poder em mãos e pode DESTRUIR a narrativa com algumas decisões imbecis. O jogador pode deixar um personagem falando sozinho e ir embora, deixando de ouvir parte importante da história, ou pode ficar dando voltas em círculo ao redor do personagem que está falando com ele, obrigando o coitado desse personagem a ficar rodando também para acompanhar, numa VALSA IMBECIL. O jogador pode passar correndo tão rápido por uma cena que nem ficará sabendo que ela existia, ou então passar o tempo inteiro olhando para o chão de modo a nem notar todas as situações da história que ocorrem ao seu redor. Todos esses casos são em geral quebras voluntárias do contrato de que falamos, com o jogador DECIDIDO A FODER A MERDA. Mas o problema de um jogo que te dá tanta liberdade nas cenas importantes é que por vezes, mesmo sem querer, você pode acabar estragando tudo só porque tomou uma decisão inusitada mas que fazia sentido na sua cabeça. Por exemplo: com medo de ser pego por trás, já entrei numa sala de costas, perdendo inteiramente uma cena importante porque eu estava olhando para o outro lado. Funhé.
Ainda assim, depois de “Half-Life” todos os jogos de tiro deixaram de ser uma simples corrida do ponto A ao ponto B com trocentos inimigos a serem mortos no caminho e passaram a tentar contar historinhas. Mas seu maior legado está nessa cenas de história se manterem interativas, com personagens que continuam conversando enquanto você joga, e que são cada vez mais frequentes nos jogos atuais – vários mantém exatamente o mesmo modelo criado em 1998, mas com uma ou outra pequena invenção para garantir que você esteja olhando para as cenas importantes, como um botão que foca o seu olhar ou algo parecido (como em “Uncharted”, por exemplo). É que depois que “Half-Life” ofereceu, ficou difícil abrir mão dessa liberdade de controlar o personagem o tempo inteiro.
“Half-Life” tem também o mérito de manter esse mote de “liberdade ao jogador” em dois outros pontos fundamentais, igualmente influentes nos jogos de hoje. O primeiro é uma física coerente e constante: objetos do cenário não são BLOCOS DE CONCRETO cravados no chão, então podem ser levantados, arremessados, arrastados como o jogador preferir, gerando estratégias únicas de combate e uma real interação com o mundo de jogo, que parece menos com o cenário de uma peça de teatro de pré-escola e mais com um mundo real e plausível. É essa física que permite a um jogo de tiro em primeira pessoa ter excelentes momentos de plataforma (já que os pulos possuem um peso e uma lógica impecáveis), e podemos ver os pilares dessa física numa infinidade de jogos atuais em primeira pessoa que te permitem pegar ou arremessar qualquer objeto (mesmo que nunca mostrem os braços responsáveis por essa interação e como consequência todos os personagens pareçam usar PODERES PSIÔNICOS).
O segundo ponto é que a Valve deu liberdade total FORA DO JOGO para que os jogadores usassem a física e as ferramentas usadas para construir “Half-Life” como bem quisessem. O jogo vinha com todos os programas necessários para os interessados alterarem “Half-Life” com diferentes texturas ou sons, criarem seus próprios ambientes e até, em última instância, seus próprios jogos. O que tem de empresa por aí que SURTA quando vê alterações no próprio jogo ou então um jogo novo sendo feito em cima do original não é pouca coisa. Volta e meia rolam uns processos bem pesados e grupos de pessoas dedicadas a mudar um jogo DE GRAÇA, só porque é divertido, são obrigados a abandonar seus projetos no meio pra não ir parar no xilindró. Mas a Valve é diferente. Não apenas deram de mão beijada as ferramentas que eles inventaram, mas também ofereceram APOIO aos grupos que criaram jogos famosos com base em “Half-Life” : “Counter-Strike” e “Day of Defeat”, por exemplo, foram comprados pela Valve e os responsáveis por esses jogos foram não processados, mas CONTRATADOS pela empresa.
É por isso que mesmo tendo um dos personagens mais cocô de todos os tempos, uma história cliché e inimigos alienígenas saídos do elenco de vilões dos Power Rangers, “Half-Life” continua ensinando lições valiosas dentro e fora dos jogos, mostrando a importância de tratar o jogador com respeito e confiança ao dar-lhe liberdade enquanto joga, e mostrando que isso também se aplica à comunidade de jogadores e de criadores que querem usar sua obra como base ou inspiração. Não à toa, a Valve virou uma das empresas queridinhas dos fãs de videogame do mundo inteiro e acabou fundando um IMPÉRIO que lucra milhões e milhões com a plataforma de jogos Steam mesmo pagando aos desenvolvedores uma porcentagem de lucro muito maior do que qualquer empresa de consoles de mesa paga hoje em dia.
E pra provar que confiança e liberdade valem a pena mesmo se alguns malucos quebrarem esse contrato, deixo com vocês o vídeo abaixo, em que um grupo de pessoas quebra TODAS AS REGRAS DE CONVIVÊNCIA E BONS COSTUMES pra fechar “Half-Life” em meros 20 minutos. É o que os criadores esperavam? Não. Mas é muito, muito engraçado.