River Raid
Escrever um haikai é um exercício extremamente complexo para os poetas. Haikais são, em sua vertente mais comum, pequenos poemas compostos por uma linha de 5 sílabas, uma segunda linha de 7 sílabas, e uma terceira e última linha de 5 sílabas. De origem japonesa, haikais são como pequenas fotografias: em um espaço muitíssimo limitado, o poema deve mostrar a relação de dois ou mais eventos presenciados, permitindo que o leitor entenda o que estava presente e seja capaz também de notar o que não estava lá, o que não está dito, o que não cabe na limitação das sílabas, mas que está implícito. Em três pequenos versos, através do talento do poeta, surge uma imagem e todo um mundo incrível que a cerca.
O que isso tem a ver com videogames? É que por mais de uma vez os criadores dos primeiros jogos de Atari foram comparados com escritores de haikai: em algumas poucas linhas de código é preciso criar todo um mundo de jogo, suas regras, seus personagens, seus objetivos, e deixar ser entrevisto o mundo que não está ali, para além dos limites do que é jogável. Não é tarefa fácil enfiar tudo isso aí dentro de QUATRO KILOBYTES DE MEMÓRIA, que é o que cabia dentro de um cartucho de Atari, e menor do que qualquer coisinha que você escrever e salvar aí no teu Bloco de Notas.
É por isso que a maioria dos jogos de Atari só possuíam uma única tela em que todas as coisas acontecem. Quanto mais telas estão presentes no jogo, mais é preciso economizar espaço da memória com outras coisas, gerando gráficos incompreensíveis, personagens que não passam de um ponto e aquele FAMIGERADO dragão do “Adventure“, que povoa nossos pesadelos. Assim como no caso dos haikais, para conseguir colocar mais informações, mais contexto, mais história e melhores imagens dentro das limitações das linhas, é preciso doses cavalares de sensibilidade e criatividade. Nos tempos de Atari é isso – e não ORÇAMENTOS milionários, tipo hoje – o que garante a qualidade de um título.
Um desses grandes gênios de como POETIZAR as linhas de código foi Carol Shaw, a primeira mulher designer de um jogo de videogames. Após trabalhar com a Atari na produção de alguns jogos, Carol foi parar na Activision e criou sua obra máxima, “River Raid”, um dos 13 jogos que fazem parte do seleto grupo que vendeu ao menos 1 milhão de cópias no Atari 2600. Ali naqueles míseros 4 kilobytes, “River Raid” faz história: ao invés de uma tela única, o jogo acontece em movimento constante para além da tela; a inteligência artificial dos inimigos é lógica mas imprevisível; o mundo faz sentido e há contexto para imaginar como ele é para além de suas bordas; e O MAIS CHOCANTE: os gráficos são tão fantásticos que dá até para saber do que se trata cada coisa na tela. É um daqueles raros casos em que não tem sacanagem: o que você vê na caixinha do jogo, dá pra encontrar durante a jogatina sem ter que fazer um exercício de imaginação e abstração sobre-humanos.
A sacada para conseguir esses gráficos num jogo que não tem tela única é o que faz de Carol Shaw a MAGA DO HAIKAI: um algoritmo explica ao jogo como “montar” toda a extensão da jogatina usando as peças básicas que lhe são dadas (os inimigos, obstáculos, corredores, etc). Mas para o jogo não montar as coisas cada hora de um jeito, correndo o risco de montar partes muito fáceis, outras exageradamente difíceis, e com isso acabar com a possibilidade de justiça na hora de competir pelas melhores pontuações, Carol deu ao algoritmo um primeiro resultado a partir do qual ele calcula o restante do jogo. Partindo sempre do mesmo ponto, e calculando sempre da mesma maneira, o algoritmo “monta” sempre o mesmo jogo, não importa quantas vezes você joga. A graça desse processo é que o jogo fica ENORME em extensão, sempre com os desafios e trajetos que a criadora escolheu desde o princípio, e mesmo assim cabe nos 4 kb que os cartuchos de Atari conseguem suportar.
Essa inovação no código não foi a única. Carol Shaw queria que o jogo fosse sempre o mesmo, com os mesmos desafios e a dificuldade por ela escolhida em cada obstáculo desenhado, para ver onde cada jogador conseguiria chegar. Mas não queria que os inimigos agissem sempre exatamente da mesma maneira, evitando que o jogo se tornasse uma simples questão de memorização como é o caso de “Silver Surfer“, por exemplo. Então ela deu a todos os inimigos uma inteligência artificial rústica: os helicópteros, aviões e barcos decidem a cada jogatina a hora em que se moverão, mesmo que a localização no cenário e o padrão de movimento sejam sempre os mesmos.
O resultado é o seguinte: um jogo super comprido, com começo, meio e fim (toda vez em que o jogador atinge 1 milhão de pontos, o que só pode acontecer mais ou menos sempre no mesmo lugar), em que é possível treinar e decorar os melhores caminhos a seguir durante os obstáculos e as bifurcações, mas em que é sempre necessário manter os reflexos atentos porque os inimigos podem te surpreender se movendo de uma maneira diferente do que haviam feito na sessão anterior. E já que o jogo é tão comprido e tão difícil, Carol resolveu criar os “checkpoints”: cada vez que o jogador passa por uma ponte, é dali que o jogo recomeçará caso o jogador perca uma vida. Se todas as vidas acabarem, aí sim o jogo começa inteiro do início. Vamos todos agradecer juntos, por favor, a invenção dos “checkpoints”? Obrigado.
Chega a ser inacreditável como as escolhas de design de Carol Shaw e seu talento para economizar espaço na memória do cartucho mudaram a história dos videogames. A sacada se tornou tão padrão que a maioria dos jogos de hoje prefere que um algoritmo monte o jogo conforme ele acontece ao invés de programar cada cena independentemente. Além disso, confrontos pré-determinados pelo criador, mas em que não é possível prever completamente o comportamento dos inimigos, se tornaram um diferencial para os jogos que prezam pela criatividade e pela adaptação do jogador. Por exemplo: enquanto em “Call of Duty” os inimigos reagem sempre da mesma maneira nas cenas pré-determinadas de confronto, de modo que é possível morrer várias vezes até aprender uma tática perfeita, em “Halo” cada sessão de jogo vê os inimigos fazendo coisas diferentes, de modo que é sempre preciso improvisar e experimentar.
O incrível é que, além da influência na escrita do código, “River Raid” se segura até hoje por si só. Na contramão dos jogos de navinha da época, sempre espaciais, Carol Shaw escolheu usar aviões de guerra numa missão suicida para além das linhas inimigas, matando o quanto for possível enquanto durar a autonomia do avião (a abordagem realista até fez o jogo ser proibido na Alemanha nos anos 80, algo que deveria ser motivo de FESTA para alguém programando poucos pixeis num Atari 2600!), o que torna o jogo único na biblioteca do Atari. Além disso, ao invés de se movimentar para frente ou para trás, o jogo te permite aumentar ou diminuir a velocidade do avião, algo essencial para fazer curvas (mais difíceis do que CIRURGIA CEREBRAL) ou desviar dos inimigos e seus padrões malucos de movimento, e tudo com um som de motor de avião que aumenta ou diminui de acordo com seus comandos – o barulho fazia a gente se sentir DENTRO do avião, mas sabe como é, a ausência de estímulos tornava nossas mentes infantes muito impressionáveis com qualquer coisinha. Mas pra mim, ainda funciona.
A dificuldade, os checkpoints, e essa constante jogabilidade viciante de uma coisa voando ETERNAMENTE para a frente e que você deve proteger desviando de obstáculos e abastecendo será para sempre irresistível – até nas versões merdas que dominaram o cenário atual, como “Flappy Bird“. Sabe esses jogos de corredores infinitos que povoam os celulares como baratas dominam seus esgotos? Que ajoelhem-se perante “River Raid”, rei dos reis, seu pai supremo, sofisticado e – olha só! – POETA DE HAIKAIS. Vamos combinar que não é pouca coisa.