EarthBound
Até 1986, RPG era considerado um gênero ocidental, demasiadamente complexo e exclusivo dos computadores. Tentativas de torná-lo acessível aos jogadores de consoles, como é o caso de “Adventure” para Atari 2600, haviam resultado em um gênero um tanto distinto, em que a história era levemente sugerida pelos poucos elementos presentes na tela – ou então pelo manual de instruções do jogo. “Dragon Quest” (ou “Dragon Warrior” nos Estados Unidos) mudou esse cenário por completo: criou uma experiência inteiramente focada na história, apoiada em uma enorme quantidade de texto, mas com representações gráficas dos eventos do jogo em tempo real. A jogabilidade permitia grande customização dos personagens ao mesmo tempo em que escondia do jogador a maior parte dos processos, números e cálculos envolvidos em fazer o jogo funcionar e que de outra forma assustariam os novatos.
O gênero se tornou um sucesso tão grande no Japão, atingindo até mesmo públicos que tradicionalmente não eram interessados em videogames, que acabou mudando o modo como os jogos eletrônicos eram encarados no país. Se antes eram obra de designers e programadores, a partir de “Dragon Quest” passaram a ser também vistos como criação de escritores e diretores interessados em contar uma história. Autores consagrados começaram a se interessar por videogames e queriam participar desse fenômeno cultural. Foi assim que Shigesato Itoi, um escritor consideravelmente famoso no Japão, resolveu entrar em contato com a Nintendo e avisou: queria criar o seu próprio RPG.
Mamãe
Foi Shigeru Miyamoto em pessoa quem recusou a proposta de Itoi. Extremamente preocupada com a qualidade dos títulos disponíveis para seu console, a Nintendo tentava evitar que empresas oportunistas criassem qualquer tipo de porcaria e atolassem o mercado como havia acontecido com a Atari alguns anos antes. Muitas celebridades sem qualquer conhecimento sobre videogames queriam participar do fenômeno inaugurado por “Dragon Quest” e Miyamoto temia que o gênero fosse exaurido por essa leva de leigos curiosos. A Nintendo recusou uma série de parcerias, mas Itoi continuou insistindo. Para provar que não estava caindo de paraquedas, diminuiu sua carga de trabalho, abriu mão de outros projetos e estudou vários RPGs, até finalmente receber o apoio de um time de desenvolvedores da Nintendo, o HAL Laboratory. Em 1989 sua obra estava completa e “Mother” era lançado para o Nintendinho japonês.
Quando “Mother” finalmente chegou ao mercado, o público japonês já havia colocado suas mãos em três “Dragon Quest”, dois “Final Fantasy” e dois “Phantasy Star” diferentes. O gênero estava dominado pela temática capa-e-espada e mesmo “Phantasy Star”, que era um jogo de ficção científica, bebia imensamente na literatura de fantasia medieval ocidental. O público já associava o gênero com o tema e já se sentia confortável dentro da mecânica de jogo que sofria apenas leves alterações de uma série para a outra.
A obra de Shigesatu Itoi era, portanto, um soco no queixo. Pra começar, colocava os personagens num mundo de jogo inspirado fortemente no mundo real, especialmente nos Estados Unidos – quer dizer, na visão que um japonês consegue ter dos Estados Unidos, com todo o ruído de comunicação que ocorre entre culturas tão distintas. Além disso, Itoi se apropriou das mecânicas, dos temas e dos clichés dos RPGs de maneira auto-consciente e jocosa. Os inimigos são absurdos, a jornada exige coletar uma série de itens que depois se mostram praticamente inúteis e o combate envolve ações fora do comum como espirrar, ter saudade ou ficar distraído. Embora sofra de uma série de problemas do gênero, como combates aleatórios a cada MEIA DÚZIA de passos e a necessidade de ganhar BILHÕES de pontos de experiência para conseguir explorar certos cenários, o jogo consegue ser uma sátira inteligente daquilo a que ele mesmo se propõe a fazer.
Contra todas as previsões, o jogo foi sucesso no Japão e imediatamente Itoi começou a trabalhar em uma sequência. Enquanto isso a Nintendo iniciou o processo de tradução para lançar o jogo nos Estados Unidos, onde o gênero RPG nos consoles ainda era desconhecido pela maioria dos jogadores e as regras de censura da Nintendo of America eram severas. Os dois projetos foram um fracasso: a tradução levou anos, tendo que reescrever trechos inteiros por serem ofensivos para a sensibilidade ocidental ou por simplesmente não fazerem sentido em outra língua, ao ponto em que o Nintendinho já estava prestes a ser descontinuado quando finalmente ficou pronta; enquanto isso, as pretensões de Itoi de tornar a sequência do seu jogo ainda mais surpreendente eram um desafio gigante para a equipe de produção, que não conseguia fazer nada a contento e batia constantemente nas limitações do hardware. Era claro que Itoi, escritor, não entendia o processo de programação necessário para tornar sua obra realidade, exigindo tarefas impossíveis do pequeno estúdio que lhe estava à disposição. Mas seu texto era brilhante e hilário e fazia fãs dentro da própria Nintendo. Em 1991, quando a continuação de “Mother” já tinha 2 anos de desenvolvimento e tudo levava a crer que seria cancelada por ter avançado muito pouco, entrou em cena o fantástico Satoru Iwata.
Mamãe 2, a vingança
Iwata, um dos mais importantes e competentes programadores da Nintendo na época, resolveu bancar o projeto mirabolante de Itoi. Assumiu a equipe de desenvolvimento, migrou o jogo para o Super Nintendo e reescreveu o código inteiro na unha. Sob sua tutela, “Mother 2” levou mais 3 anos para ficar pronto. Manteve-se fiel à visão exagerada de Itoi e ainda assim era um primor técnico. Iwata acreditava ter uma obra-prima em mãos, algo que seria comentado por jogadores e não-jogadores, uma obra de impacto cultural. Por isso a campanha comercial de “Mother 2” no Japão sequer mostrava imagens do jogo ou falava sobre seus temas, apenas avisando que seria impossível fugir de sua importância.
O jogo foi um sucesso imediato no Japão, consolidando Itoi como uma celebridade capaz de ditar os assuntos do momento e a série “Mother” como uma das mais importantes franquias da Nintendo. Mas lançar o jogo no mercado ocidental não era bolinho mesmo com o sucesso japonês. A tradução do primeiro jogo da série havia sido oficialmente abandonada junto com o fim do ciclo do Nintendinho. Além disso, a obra de Itoi baseava-se na crítica aos principais clichés dos RPGs, um gênero que o público ocidental não estava familiarizado o bastante para poder compreender a ironia. Some isso ao choque cultural de um japonês satirizando a cultura americana (com o nome “Mother”, inclusive, fazendo alusão à música de John Lennon) e o que temos é um pesadelo para os responsáveis pelo lançamento ocidental.
Esse jogo fede
A filial americana da Nintendo conseguiu lançar a obra de Itoi nos Estados Unidos, mas o processo deu muito trabalho. O primeiro passo foi alterar o nome do jogo para “EarthBound”, escondendo que se tratava da continuação de uma marca não lançada previamente. Depois disso, a tradução fez o possível para manter o humor pastelão e os trocadilhos presentes no original japonês através de decisões polêmicas, mas muitas vezes inteligentes. O esforço de tradução de “EarthBound” foi algo que a indústria de videogames nunca havia visto, exigindo muito cuidado para cada uma das milhares de linhas de texto numa época em que os jogos não tinham mais do que uma dúzia de palavras e eram traduzidos sem qualquer esmero, às vezes por um funcionário interno que sequer era especialista. E, pra finalizar, foi necessário alterar uma série de imagens do jogo para que ele se adequasse à política ocidental da Nintendo, arrancando as referências religiosas, as aparições de drogas e bebidas alcoólicas, presença de nudez, referências à morte, e até colocando um pompom na ponta do capuz inspirado na Ku Klux Klan para torná-lo mais parecido com um pijama.
Vale a pena espiar a lista completa de todas as alterações feitas tanto no texto quanto na parte gráfica para o lançamento ocidental e entender como as filiais da Nintendo possuíam visões bem diferentes a respeito do que era ou não conteúdo apropriado.
Mas foi na campanha de marketing que a Nintendo of America acabou se atrapalhando inteira. As propagandas tentaram preparar o público para as piadas estranhas do jogo, deixando claro que era uma obra que não se levava muito a sério, e pra isso escolheram um tipo de humor infantil que é a brincadeira com o nojo: “this game stinks” (algo como “esse jogo fede” ou “esse jogo é uma merda”, como preferir) era o slogan da campanha e o jogo vinha até mesmo com cartões fedidos dos personagens principais.
Enquanto a versão japonesa apostava na ideia de que o jogo era para TODOS e que não jogá-lo deixaria você por fora do BABADO, a versão americana apostou em COISAS FEDIDAS que notoriamente não são sucesso com ninguém que tenha dois dígitos de idade. Pra piorar tudo, com medo de que o público infantil se frustrasse com o jogo por não ter familiaridade com o gênero e que abandonasse o cartucho na primeira vez que não soubesse para onde ir no mapa, a Nintendo colocou junto com cada cópia de “EarthBound” o guia de jogo completo, com um passo-a-passo de como chegar ao seu final. O guia e os cartões fedidos encareceram o produto final o suficiente para que o pacote custasse praticamente o dobro do que a maioria dos jogos disponíveis para o Super Nintendo na época. O resultado é que o jogo virou cult, com alguns seguidores apaixonados, mas foi um fracasso colossal fora do Japão. Quando seu personagem principal foi resgatado pela Nintendo em 1999 para participar de “Super Smash Bros.”, jogo de luta programado pelo mesmo HAL Laboratory da série “Mother”, a maior parte dos jogadores do ocidente não conseguia entender o que ele estava fazendo ali do lado de ícones como Mario, Link e Samus. Para o público japonês, pelo contrário, não ter o personagem Ness no jogo seria uma omissão simplesmente imperdoável.
Um jogo brechtiano
Com publicidade merda ou não, o público não tinha como estar preparado para “EarthBound”. As cores alegres e vibrantes, os personagens infantis e as piadas bonachonas desarmam o jogador para que Itoi possa quebrar a quarta parede, mostrando que o jogo sabe que é um jogo e convidando o jogador a perceber esse processo de maneira consciente e crítica. Nos lugares mais inusitados o texto de Itoi enfia dedos em feridas culturais, tira sarro da tolice dos videogames e dá lições de moral pouco convencionais. O personagem Ness viaja para dentro de sua própria mente (pelado no original, de pijama na versão americana) e enfrenta situações perturbadoras, com combates em turno que se preocupam pouco em obedecer o próprio sistema de jogo e muito em transmitir sensações desconfortáveis para o jogador. O confronto final ocorre em meio a frases desconexas de uma criatura atormentada que parecem sugerir uma cena de estupro, com imagens disformes ao fundo, música incrivelmente desconfortável e um combate em que as ações mais frequentes dos membros do grupo acabam sendo CHORAR e REZAR. Quer a prova? Assista aos minutos finais do jogo e tente imaginar quão surreal é isso estar acontecendo num console da Nintendo.
“EarthBound” é uma obra que se orgulha de fazer rir e de fazer chorar com o mínimo de possibilidades, e que frequentemente está disposta a se divertir com sua falta de recursos e com toda a enrolação e os clichés que antecedem seus momentos verdadeiramente cruciais.
Shigesato Itoi admira os videogames e compreende sua dinâmica, mas não o suficiente para tratar os jogos eletrônicos com exagerada reverência, respeito ou seriedade, com um game designer de origem faria. Ele é um escritor, um homem de outra mídia, capaz de utilizar recursos da literatura e do teatro para questionar o próprio funcionamento dos jogos. Não à toa, o jogo termina com cada um dos personagens – os “atores” – olhando diretamente para os olhos do jogador, como se dissessem: “sabemos que você está aí.” Depois de anos protegido atrás dos controles, foi a primeira vez que me senti, como jogador, fora da minha zona de conforto.
Mother 3
Se a continuação de “Mother” só saiu 5 anos depois e quase foi abandonada se não fosse a ação direta de Satoru Iwata, “Mother 3” conseguiu ter uma jornada AINDA PIOR: produzido por Iwata, o jogo saiu DOZE anos depois, foi jogado todinho no lixo quando estava quase pronto para o Nintendo 64 por culpa de uma série de problemas técnicos e então refeito do zero para Game Boy Advance, quando foi finalmente lançado no Japão em 2006. Muito mais maduro, político, perturbador, derrubador de quartas paredes e cercado de importantes referências sexuais, “Mother 3” sequer foi cogitado para um lançamento ocidental, sendo acessível em inglês apenas pelo fruto de anos de trabalho e dedicação de um tradutor que disponibilizou de graça sua tradução pessoal do jogo.
Foi com essa tradução que tive contato com “Mother 3”, um dos meus jogos favoritos da vida. É possível ver a cara da Nintendo por toda a parte no jogo, com seu visual alegre, suas músicas assoviantes, seus personagens carismáticos – até que de repente entra o dedo do Itoi e por entre as frestas surge gente morrendo, iniciações sexuais bizarras e viagens paranoicas de cogumelo. Pensado para um portátil, o jogo se torna ainda mais incômodo quando fala diretamente com o jogador – com frases como “sim, você aí atrás da tela”. Não há onde se esconder.
Como único exemplar da série “Mother” lançado oficialmente no ocidente, “EarthBound” leva nossa honraria de Pixel das Galáxias e serve ao mesmo tempo de homenagem ao recém-falecido Satoru Iwata, o programador que impediu o jogo de ser cancelado e que bancou e apoiou um toque brechtiano de insanidade dentro da empresa tradicional que ele geriu pela última década. A dupla Iwata e Itoi é prova de que é possível construir jogos profundos, complexos e críticos mesmo com poucos recursos, estúdios pequenos e hardware limitado. Por isso, o homem que sentou e fez “EarthBound” simplesmente funcionar com O PODER DO CÓDIGO deixará saudades. Obrigado por tudo.