Pokémon Red e Blue
Antes de ser uma marca multi-bilionária por si só e garantir vendas na casa das centenas de milhões de qualquer portátil em que for parar, “Pokémon” era uma experiência bem diferente. Lançado originalmente para o Game Boy tijolão (aquele de tela verde, 4 pilhas e uns oitocentos quilos), o visual era incrivelmente simplório (não havia qualquer possibilidade de gráficos coloridos ainda), as batalhas eram estáticas e a jogabilidade bem direta, filtrando as características dos RPGs da época e deixando apenas o mais essencial: combate por turnos bem simplificado, com apenas 4 golpes por personagem e duelos só no mano-a-mano. Tinha tudo para ser apenas uma versão diluída para portátil de RPGs mais complexos como “Final Fantasy”, se não fosse pela junção ÉPICA de uma série de pequenos detalhes que formaram um dos jogos mais populares de todos os tempos.
Primeiramente, “Pokémon” acerta na temática ao pegar a jornada típica do herói e torná-la algo acessível e plausível para a molecada: no mundo do jogo, crianças a partir dos 10 anos podem escolher partir em uma “jornada Pokémon” para caçar e treinar criaturas caso tenham interesse, o que fazia o público infantil salivar de inveja. Também ajuda o fato de que essa “jornada” inclui um dos motes principais das civilizações ocidentais, que é a tentativa do homem de dominar a natureza com sua inteligência (desde Odisseu, na Grécia Antiga, usando suas artimanhas para vencer a natureza dos cantos das sereias, por exemplo). Em “Pokémon”, o grande objetivo é capturar o máximo das criaturas que habitam o mundo através do seu engenho e tecnologia e fazer simplesmente com que elas trabalhem para você. O mundo inteiro se porta como um simples objeto a ser confrontado e dominado, o que faz os jogadores se sentirem parte cientistas, parte Kátia Abreu.
Essa relação meio fascinada, meio predatória com a natureza é o conceito básico do jogo. Isso porque o criador de “Pokémon”, Satoshi Tajiri, queria recriar para a geração crescida em apartamentos a sua experiência infantil de colecionar insetos. “Pokémon” oferece esse mesmo prazer ingênuo da coleção, mas em versão hardcore capitalista, com 150 criaturas a serem encontradas, derrotas, aprisionadas e estocadas com o afinco de um cartão de crédito bêbado num shopping center. O slogan da coisa toda, “gotta catch ‘em all” (que em português virou o medonho “temos que pegar”), é o incentivo máximo para que a criança queira consumir todas as criaturas disponíveis e não descanse até completar sua coleção semi-inútil. A natureza é fascinante, então vamos controlar e enfiar num pote?
Juntemos a isso a sensacional sacada de Shigeru Miyamoto, papai de “Super Mario Bros.“, de lançar “Pokémon” em duas versões (“Blue” e “Red”), cada uma contando com algumas criaturas exclusivas. Através de um cabo que permitia trocas entre dois Game Boys distintos, era possível encontrar um amigo e pegar com ele as criaturas não disponíveis na sua versão. Ou seja, havia um enorme incentivo para que um jovem jogador, ávido por completar sua coleção, convencesse seu coleguinha a comprar o jogo também mas numa versão diferente. O Miyamoto só não contava com o fato de que esse plano deu errado: ninguém convenceu coleguinhas; ao invés disso, as pessoas simplesmente COMPRARAM AS DUAS VERSÕES do jogo e foda-se, que esse lance de ter coleguinhas dá muito trabalho. Não é à toa que o “Pokémon” original vendeu mais de 10 milhões de cópias só no Japão.
Se não fosse irresistível por si só, essa jornada do herói rumo ao controle consumista da natureza ainda se alia à SEDE DE SANGUE que todo mundo tem, saciada quando o jogador pega as criaturas na natureza e coloca elas para brigar tipo RINHA DE GALO. O combate faz com que essas criaturas fiquem mais fortes, ganhem mais habilidades e subam de nível, como em qualquer RPG digno de nota – o que já é viciante em si. O combate é um dos maiores trunfos de “Pokémon”, porque é incrivelmente simples para uma criança, com apenas quatro golpes a serem escolhidos de cada vez e uma relação de fraquezas entre elementos fácil de aprender e decorar, mas também assustadoramente profundo para os viciados em RPG, com uma série de estatísticas a serem dissecadas, analisadas e alteradas em busca das estratégias perfeitas para vencer com cada criatura.
Mas aqui ainda tem mais uma sacada: os pokémons, quando atingem níveis determinados através da experiência ganha nos combates, evoluem para formas físicas distintas. Uma criatura quadrúpede que parece um rinoceronte acaba evoluindo para um ser bípede com chifres que parece inimigo do Godzilla; o lagartinho que tem (literalmente) fogo no rabo acaba evoluindo para um dragão com azia; etc. Querer levar sua criatura para a próxima forma física é um desejo constante, e o momento de transformação é recheado de euforia e expectativa, com uma lagriminha solitária insistindo em escorrer ali no canto do olho.
Eu falei euforia e expectativa? Sim, amigo, segura aqui na minha mão e vamos viajar para o GLORIOSO mundo de 1996 (ou 1998, no caso do lançamento do jogo em inglês). Naquela época ninguém sabia o que era “Pokémon”, não existiam mil revistas com um rato amarelo nas bancas, nem bilhões de sites na internet descrevendo cada mínima estratégia, nem um exército de crianças no intervalo da escola trocando cartinhas de pokémons como se não houvesse amanhã. Aquela era uma época de MISTÉRIO, em que aquela natureza a ser dominada era DESCONHECIDA, em que ninguém fazia ideia de quais eram os 150 pokémons disponíveis, quando evoluiriam (ou SE evoluiriam), no que se tornariam, que golpes ganhariam. Tudo era surpreendente e um pokémon evoluir para uma nova forma era como ver um rinoceronte branco ser parido: dava aquela sensação de que era um espetáculo único só pra você e pra mais ninguém. Poder dar um nome próprio para cada criatura ajudava nessa relação de pessoalidade (Charlie, meu querido Charizard: never forget!).
Hoje em dia, os novos jogos da franquia são milimetricamente catalogados e debulhados antes mesmo de chegarem às lojas, e o jogador se quiser pode simplesmente bater o olho num guia e escolher as suas criaturas favoritas para capturar, os níveis em que evoluirão e os melhores golpes a lhes ensinar; dá pra colocar as criaturas pra cruzar até gerar o EMBRIÃO PERFEITO (que pra quem gosta de cinema nacional, era também a intenção do Zé do Caixão em todos os seus filmes), e desses embriões gerar criaturas invencíveis. É um jogo sobre dissecar o mundo natural até que ele seja exatamente como lhe convém, é mostrar para o mundo natural quem é que manda.
Mas na época de “Pokémon” em suas versões “Blue” e “Red” no Game Boy gordão, havia ainda um resto de espanto, de reverência e de exploração ali no meio da CAÇA LEGALIZADA DE ANIMAIS SILVESTRES PARA LUTAREM EM RINHA. É por isso que o “Pokémon” original será sempre uma experiência inesquecível, um dos jogos mais incríveis de todos os tempos, uma aula para todas as produtoras de jogos de como fazer um jogo que é ao mesmo tempo acessível e profundo, e acima de tudo uma lição valiosa de como fazer um produto que é sobre consumir outros produtos. Porque a gente vê a armadilha, a gente vê a grana indo pela privada, e mesmo assim no fundo a gente sabe: temos que pegar!, e tudo ao som da DISPARADA melhor trilha sonora que o Game Boy taquara rachada já viu.
(A cada semana escolhemos um jogo sensacionível pra levar o troféu de PIXEL DAS GALÁXIAS, o prêmio mais imprevisível desde a Porta dos Desesperados, do Sérgio Mallandro.)