Harvest Moon
Em 1996, jogos de videogame eram formados basicamente por dois modelos: ou um desafio que deve ser vencido para aumentar sua pontuação, ou então uma série de desafios que devem ser vencidos rumo a um objetivo final, que termina o jogo. Se o jogador soltar o controle, se recusar a cumprir os desafios ou ficar apenas se divertindo com elementos que não são os desafios propostos, o jogo não avança e consequentemente não chega ao seu final, podendo até acarretar na morte do personagem (seja na mão de inimigos, seja porque o tempo expira, como nas fases de “Super Mario Bros.“).
Isso até que Yasuhiro Wada pensou em algo diferente: um jogo que simularia um dia depois do outro, durante 3 anos, e que então terminaria independentemente de seus resultados, de suas conquistas ou dos desafios enfrentados. É um jogo com prazo de validade em que a graça está na experiência do jogador durante esse tempo pré-determinado, não em pontuações ou em terminar o jogo.
Quando Yasuhiro Wade se mudou para Tokyo, vindo de uma pequena cidade do interior do Japão, percebeu a enorme diferença não apenas no cotidiano das pessoas, mas também nos valores, interesses e na relação das pessoas entre elas e com a própria cidade. Quando sentou para criar um jogo de videogames, resolveu tentar mostrar para os jogadores alguns elementos da vida no campo que a maioria dos moradores de centros urbanos sequer sabia que existiam. Sua intenção não era então criar desafios a serem superados pelos jogadores em busca da vitória, mas sim criar uma ambientação que permitisse aos jogadores experimentar uma vida diferente e inesperada. Nasceu assim “Harvest Moon”, um simulador de vida na fazenda em formato de RPG. Nele o jogador encarna um jovem rapaz que, frente a uma viagem de vários anos de seus pais, se vê obrigado a assumir a fazenda em que reside. É possível cuidar das plantações, das criações de galinhas e vacas, limpar e expandir o terreno, aumentar as instalações da fazenda, vender suas mercadorias, ou então aproveitar que você está sozinho em casa por anos pra TACAR O FODA-SE.
Simulador de “eta vida besta, meu deus”
Se você pensou que deixar a casa por anos nas mãos de um adolescente é praticamente pedir pra que ele passe os dias coçando o saco ou azarando menininhas, pois saiba que essa é uma das possibilidades reais do jogo. Com uma pequena caminhada é possível visitar a cidade mais próxima da fazenda e aproveitar de sua vida pacata de interior: todo mundo sabe seu nome e está sempre disposto a um papo, as garotas solteiras aguardam sua atenção, a igreja vira ponto de encontro aos domingos, e o bar enche todas as noites de gente que fica aguardando a vida passar.
Dá pra ficar só cortejando as meninas, procurando presentes para agradá-las, sentar em algum lago noite adentro apenas tentando decidir qual das suas pretendentes você levará no festival de primavera. Conforme os dias passam as estações vão mudando, o momento de plantar certos alimentos chega, e a cidade começa a se preparar para as festividades correspondentes à época do ano. Em pouquíssimo tempo o jogo faz sua mágica e começa a prender o jogador dentro de sua lógica interna, fazendo com que se espere ansiosamente as próximas festas sazonais e admirando o modo como a cidade inteira se mobiliza para esses momentos. É incrível como uma coisa tão tola como uma festinha que dura menos de 5 minutos de jogo pode ter TANTO IMPACTO, fazendo com que você conte os dias para sua chegada e planeje com antecedência os presentes que dará para sua garota preferida nessa ocasião especial.
Aí está a vitória de Yasuhiro Wade: sem qualquer tipo de ação, de inimigos, de possibilidade de morte ou de falha; sem nenhum tipo de estímulo que não seja a pacata vida em comunidade da cidade mais próxima; o jogador começa por isso a aprender o nome de todo mundo, criar carinho por aquelas pessoas, prestar atenção na mudança das estações do ano, participar das festividades e até IR NA IGREJA só pela oportunidade de ver as pessoas. A ausência de estímulos faz com que aquilo que está disponível no jogo receba uma atenção redobrada. Conseguir namorar e eventualmente casar com uma das moradoras parece uma vitória épica; ter lucro numa safra idiota de tomates parece a emoção de PISAR NA LUA, já que não tem COISA NENHUMA ACONTECENDO fora essas pequenas alegrias cotidianas. É uma lição de vida.
Trabalho voluntário
Se Yasuhiro Wade consegue fazer com que o jogador passe a apreciar as pequenas coisas da vida e o cotidiano das micro-comunidades, também é eficiente em quebrar o preconceito de que a vida no campo é um passeio no parque. Se você quer conseguir alguma graninha pra comprar uns presentes bacanas, uma cama de casal pra ter umas NOITES ARDENTES, ou até aumentar a casa pra ter espaço para um filhote, é preciso TRABALHAR DURO. Comprar sementes, plantar, regar, colher, estocar, vender, cuidar dos animais, chocar ovos, vacinar vacas, limpar o terreno de ervas daninhas, arrumar cercas, quebrar pedras, tudo é um trabalho massante e demorado que às vezes faz com que o dia não dê pra mais nada; perdi a conta dos dias em que trabalhei na terra madrugada adentro e deixei de curtir a noite no bar com os trutas. Por isso que os pequenos momentos longe do trabalho, curtindo a comunidade, são ainda mais prazerosos e importantes: o resto é UM SACO.
“Harvest Moon” é surpreendente porque te faz, enquanto jogador, TRABALHAR DE GRAÇA. Ninguém que eu conheça passou 60 horas trabalhando na terra de “Harvest Moon” e recebeu um salário qualquer pelo correio. São horas perdidas, não geram coisa nenhuma no mundo real e não avançam o jogo internamente; estão ali apenas pela EXPERIÊNCIA de um trabalho desgastante e podem ser completamente puladas se o jogador não tiver ganância nenhuma e quiser passar 3 anos inteiros no bar ou pescando de boa na lagoa. Mas não, a gente tem GANÂNCIA, a gente quer ter mais e mais vaquinhas pra ordenhar, a gente quer que a filha bonita do prefeito goste da gente. Eis que descobrimos com “Harvest Moon” um potencial dos videogames como meio que muita gente ainda não entende até hoje: mesmo sem objetivos, pontos ou finalidade, os jogos possuem um valor como experiência, como possibilidade de viver uma vida que não é a minha. Mesmo que essa vida seja muito, muito idiota.
Menina também entra
Vencendo o preconceito de quem achava que um jogo sem inimigos ou obstáculos jamais faria sucesso, “Harvest Moon” vendeu bem no Super Nintendo e conseguiu uma legião de fãs fiéis especialmente entre as garotas, historicamente menos interessadas em jogos focados exclusivamente em ação. A série “Harvest Moon” continuou em praticamente todos os consoles da Nintendo ao longo dos anos, ganhando inclusive versões voltadas para as meninas, com a mesma jogabilidade mas uma cidade recheada de mocinhos solteiros prontos para serem conquistados. Esse sucesso entre diferentes públicos é o que preparou o terreno para os trocentos joguetes de plantação que são sucesso nas redes sociais de hoje, de “FarmVille” a “Fazenda Feliz”.
Essa simulação de fazenda com elementos de RPG criou um gênero que atravessou o planeta (tanto é que os elementos essencialmente japoneses de “Harvest Moon”, como a comida nipônica ou as referências a deuses xintoístas, passam quase que inteiramente despercebidos no ocidente) e que mostrou todo o potencial dos videogames como experiência, não como maratona de obstáculos – e, no processo, os perigos de se trabalhar de graça atrás de um computador só PORQUE SIM, que ganância é droga pesada.