Golden Axe
Quem vê a enorme quantidade de jogos de videogame japoneses que se passam em versões fantasiosas da Europa medieval pode acabar se esquecendo que essa ambientação não é tradicional do Japão, que por estar em outro contexto viveu seu período feudal com samurais e ninjas, não com cavaleiros e lanças.
Os cavaleiros medievais europeus e todo seu entorno fantasioso, extraído do folclore local e dos livros de Tolkien, sempre foram a ambientação preferida dos jogadores de RPG ocidentais mesmo antes da existência dos videogames. Os RPGs, jogos em que se interpretam diferentes personagens, eram jogados com papel, caneta e dados durante os anos 70, e as sessões de jogo eram cheias de mapas, regras, magias, números, tabelas e estatísticas. A tentativa de passar essa experiência para os jogos eletrônicos nos anos 80 era muito mais simplificada, especialmente nos jogos de puro texto, mas ajudou a popularizar muito a ambientação que passou a ser chamada de “fantasia medieval”.
Um dos jogos de videogame que chegaram mais perto de reproduzir a complexidade dos RPGs de mesa nos anos 80 foi “Ultima”, um jogo de 1981 criado nos Estados Unidos com gráficos muitíssimo limitados, mas recheado de estatísticas e mapas gigantescos. Quando os estúdios de jogos japoneses deram uma olhada na complexidade daquilo, ficaram malucos de inveja. Em 1986 aconteceria a grande empreitada do estúdio Enix para apresentar os RPGs, de maneira um pouco mais acessível, para o público japonês no Nintendinho: era “Dragon Quest” e sua ambientação de fantasia medieval, cheia de capa-e-espada, magias poderosas e monstros do folclore europeu. Foi um sucesso.
No ano seguinte a Sega, claro, quis entrar na brincadeira e lançar seu próprio RPG para o rival Master System. Mas o estúdio achou que o público japonês havia se apaixonado pela JOGABILIDADE de “Dragon Quest”, não pela temática de fantasia medieval que não tinha NADA a ver com a cultura do Japão. Assim, optou por criar um RPG baseado num tema mais comum no país, a ficção científica. Assim nasceu em 1987 o fantasticamente maravilhoso “Phantasy Star” e seu cenário espacial. Foi um fracasso.
A história detalhada tanto de “Dragon Quest” quanto de “Phantasy Star” fica para outro dia. O que nos importa no momento é que Makoto Uchida, funcionário da Sega, era um defensor da ideia de ter feito um RPG de fantasia medieval desde o começo, mas não recebeu permissão, sendo alertado de que a ambientação não iria pegar no Japão. Assim, Uchida partiu para projetos menores dentro da Sega, mas se apropriando de temas ocidentais para testar o terreno. Seu primeiro jogo, que já debatemos por aqui, foi “Altered Beast” e sua compreensão satírica e homo-erótica da cultura grega clássica. Sua segunda tentativa dentro dos temas ocidentais já foi na fantasia medieval, numa tentativa assumida de misturar “Double Dragon” com “Dragon Quest” e sua temática capa-e-espada. Surgiu assim “Golden Axe”, um “Dragon Quest” de pancadaria com bárbaros, orcs, magias e dragões. Foi um sucesso.
Será que já estamos começando a perceber um padrão aqui? Ao contrário do que a Sega queria admitir, os japoneses estavam claramente apaixonados por um tema que não fazia parte de sua cultura e compravam qualquer coisa que tivesse cavaleiros medievais. Como bônus, esses jogos ainda eram mais fáceis de comercializar no ocidente do que aqueles com temas mais tradicionalmente japoneses. O próprio estúdio criador de “Double Dragon”, a Technos, não conseguia lançar fora do Japão sua série seguinte “Kunio-kun”, sobre adolescentes se batendo na saída de escolas japonesas, e nem seus jogos de queimada (por que será, né?). Mas o clone medieval de “Double Dragon” da Sega foi capaz de pegar a lacuna deixada pela Technos e ser sucesso no mundo inteiro sem muito esforço. Pouco tempo depois de faturar alto nos arcades, “Golden Axe” já estava ajudando a vender consoles no Mega Drive planeta afora – e olha que o jogo nem era tão especial assim.
“Golden Axe” é um jogo de dê-porrada-neles bem simples: um botão bate, um botão pula, um botão solta uma magia e dois botões juntos dão um golpete especial que de especial não tem bulhufas. As inovações do jogo não estão na jogabilidade principal, mas nos pequenos detalhes. Primeiro, existe a sacada de ser possível usar montaria: um lagarto de bico bizarro (que era um dos inimigos lá no “Altered Beast”) que ataca com sua calda, e um dragão bípede sem asas que cospe fogo nos inimigos. Andar por aí montado especialmente no dragão dá uma sensação de poder e superioridade rara, e se você olhar BEM NO FUNDO dos olhos do dragão, dizem que você consegue enxergar o futuro e ver o Mario montando no Yoshi em “Super Mario World”, de 1990.
Mas o grande lance do jogo está no fato de que existe “fogo amigo” – seus golpes atingem seu coleguinha se você estiver jogando multiplayer – e o tempo inteiro surgem situações de disputa que te encorajam a dar pelo menos um PETELEQUINHO no seu companheiro. Ao subir na montaria o jogador fica muito poderoso, mas basta tomar um soco de nada e ele capota no chão deixando a montaria livre para quem quiser pegar (sejam jogadores, sejam os inimigos). Então se rolar uma ciumeira básica, é só dar um golpe singelo no seu colega e pegar a montaria dele, fugindo da retaliação até chegarem os inimigos – momento em que a treta pessoal precisa ser deixada de lado em nome de um BEM MAIOR.
Mas existem outras situações de GANÂNCIA entre jogadores. Por exemplo: o sistema de magia é bem legal, exigindo a coleta de pequenos frascos azuis de modo a preencher barras na tela; cada barra que se enche (e cada personagem precisa de um certo número de frascos para cada barra) muda a magia que será lançada, com uma nova animação bacanuda e muito mais poder, o que faz com que os jogadores SE ESTAPEIEM pra ver quem pega mais dos limitados frascos azuis que aparecem em jogo. Isso é o “fogo amigo” feito direito: você não vai matar seu amigo sem querer a todo momento que der uma porrada como em “Battletoads“, mas vai ter que tomar cuidado com onde a sua montaria-dragão cospe fogo e pode dar umas pancadinhas gananciosas no coleguinha pra formar caráter. O jogo estimula tanto a graça do multiplayer que parece ter resolvido ser praticamente IMPOSSÍVEL para o jogador solitário: os inimigos cortam o seu combo no meio com um peteleco que quase não causa dado nenhum, mas sem ninguém lá pra te salvar, todo os inimigos aproveitam esse segundo de fragilidade e fazem uma RODA pra te descer a porrada até a morte. Muito, muito cruel.
Outra coisa bacana é que o jogo é muito bem-sucedido ao tentar transmitir a sensação de “jornada” que os jogos de RPG costumam ter, mesmo sendo um jogo de luta. Apesar de ser curtinho e só ter meia dúzia de estágios, entre cada um deles há um momento em que o trajeto dos heróis é mostrado num mapa e os personagens aparecem dormindo ao lado de uma fogueira, dando a impressão de uma viagem que leva muitos dias. Eu só não entendo o motivo dos personagens não dormirem em turnos, já que todas as noites surge um TROMBADINHA e te rouba frascos azuis de magia, sendo necessário que os jogadores acordem, chutem os meliantes e recuperem seus frascos – além dos frascos extras que os ladrões carregam, claro. Pensando bem, acho que dormirem ao mesmo tempo faz sentido: é tudo uma cilada para se APROVEITAR DOS LADRÕES, claro.
O sucesso de “Golden Axe” somou-se ao de “Dragon Quest” e de “Final Fantasy”, e ao fracasso de “Phantasy Star”, para criar uma tendência que não poderia mais ser combatida. Poucos anos depois a Sega finalmente deu o braço a torcer e lançou seu primeiro RPG de fantasia medieval (com uns toques de ficção científica porque eles não se aguentam), “Shining Force”, lá em 1992. O mercado estava enfim inteiramente dominado por cavaleiros de capa, espada e magia. Por mais de uma década, lançar um RPG em qualquer outro cenário seria um ato de resistência. Até hoje a ambientação medieval é unanimidade no Japão, às vezes com mais toques de tecnologia, às vezes com menos. É um fenômeno inexplicável e que contribuiu para que o mercado deles ficasse perigosamente monotemático justamente quando a indústria mundial começava a diversificar.