ActRaiser
No começo dos anos 90 o braço da Nintendo nos Estados Unidos, a Nintendo of America, tinha uma visão bastante clara do que deveria ou não estar presente em seus consoles – ou seja, do que levava ou não o aclamado “Selo Nintendo”, que vinha na caixinha dos jogos e garantia que seriam vendidos legalmente. Só que “visão bastante clara” no fundo é só um modo simpático de dizer que rolava uma censura violenta por parte dos engravatados que regiam a empresa. Na época, nós jogadores tínhamos uma certa noção de que isso acontecia nos bastidores basicamente porque a versão de “Mortal Kombat” do Mega Drive tinha sangue e morte a rodo, enquanto no Super Nintendo o sangue era só uma babinha transparente sem graça e a matança era bem amenizada. A Sega estava muito preocupada em ser “legal”, o que quer que isso signifique, e se empenhava em criar personagens descolados, muita velocidade e uma dose generosa de sangue sempre que possível. A Nintendo of America, por outro lado, se empenhava em criar um console “família”, sem qualquer conteúdo potencialmente ofensivo – de novo, seja lá o que isso signifique. A diferença de abordagem só ajudou a reforçar a campanha de marketing “Genesis does what Nintendon’t” (algo como “O Mega Drive faz o que a Nintendo não”, mas com um trocadilho merda embutido na frase), que fez muito sucesso nos anos 90. Essa rixa entre as empresas certamente já foi motivo de muita pancadaria nerd nos recreios escolares da vida.
Mas o que não se sabia na época é que a política de censura da Nintendo of America era muito mais rígida do que uma simples preocupação com sangue. A lista de conteúdo proibido incluía qualquer referência a sexo, temas religiosos, símbolos étnicos ou raciais, álcool ou cigarro, afirmações políticas e violência gratuita – mesmo quando esses conteúdos haviam sido feitos pela própria Nintendo no Japão. Isso explica o motivo de “Mother”, do Nintendinho, nunca ter saído nos Estados Unidos (imagina o pavor do comitê de censura ao ver que nos momentos finais do RPG você adentra uma enorme vagina para poder matar um feto gigante dentro, sério), ou do jogo “O castelo satânico do Drácula” ter seu nome alterado para “Castlevania”. Até mesmo a cruz da placa do hospital de “Earthbound” teve que ser apagada, assim como qualquer cruz nas lápides de “Ducktales” ou até os bares de “Final Fantasy VI”. A Nintendo censurou de tudo, numa lista imensa, deixando passar batido de vez em quando apenas o elástico conceito de “violenta gratuita”: afinal, aquela tartaruga bizarra não estava cuidando tranquilamente da própria vida até o maligno Mario vir do nada pisar em sua cabeça?
Para mim, o mais interessante de toda essa história de censura é ver como os japoneses lidavam de maneira completamente diferente com a coisa. Embora o Japão censure pornografia explícita para todas as idades até hoje (inclusive para adultos!), referências diretas ao ato sexual são consideradas engraçadas até mesmo para crianças. Além disso, por não terem maioria cristã, japoneses lidam com os temas bíblicos com um misto de curiosidade e estranheza, fazendo adaptações bizarras livremente no que pra eles não passa de uma mitologia um tanto estranha e incompreensível – e que por isso mesmo virou tema de um sem número de jogos e desenhos animados. É justamente desse estranhamento que surgiu “ActRaiser”, um clássico meio esquecido do Super Nintendo.
No original japonês o personagem jogável de “ActRaiser” é ninguém menos do que o Deus cristão, retornando de um sono de milênios após sua última grande batalha contra Satã e descobrindo que depois de tanto tempo ausente ninguém mais acredita que ele existe. Enfraquecido pela falta de fé, Deus só pode andar entre os homens animando uma estátua que o representa – aquela que o jogador controla para matar um monte de demônios e criaturas mitológicas que servem a outros deuses. É divertido que os japoneses transformem o monoteísmo cristão numa guerra entre vários deuses, quase como se eles não conseguissem imaginar uma religião com tão pouca gente, deve parecer muito monótona. Em termos de jogabilidade, matar esses demônios pulando de plataforma em plataforma é simples mas satisfatório, nada de mais. O que se destaca mesmo é o visual dessas criaturas, as referências mitológicas e, claro, a trilha sonora de chorar na calçada de Yuzo Koshiro. Responsável por algumas das melhores trilhas da história desse humilde planetinha, como “Streets of Rage” e “Shenmue”, seu trabalho em “ActRaiser” vai do épico ao bizarro em questão de segundos, o que só deixa ainda mais interessante e desconfortável a estabanada apropriação oriental de toda a temática ocidental. Não tem jeito: quando eles lidam com temas notoriamente ocidentais, do capa-e-espada de “Final Fantasy” ao noir de jogos recentes como “D4”, do Xbox One, é sempre como se um alienígena estivesse fazendo a melhor imitação possível de um ser humano e decidisse para isso escovar os dentes enquanto planta bananeira. É interessante mas constantemente fora de lugar – talvez interessante porque fora de lugar, admito.
Aí quando você já está pensando que “ActRaiser” é só esse jogo plataforma de ação que caiu num caldeirão cultural com um pouco de saquê, e que a graça está justamente nesse estranhamento moderado meio breaco, eis que o álcool começa a subir, a roleta russa dos gêneros começa a girar e o jogo muda por completo: ao terminar uma fase, Deus passa a ver a civilização humana da sua base nos céus e o jogador deve então controlar um anjinho pelado para ajudar essa civilização a prosperar (e, de lambuja, voltar a acreditar que Deus existe). Vamos tentar acompanhar: você controla um anjo, que é controlado por deus, que é controlado por você. Faz sentido?
Nesse modo de jogo o que importa é criar uma estratégia que ajude os humanos a construir mais casas, aumentar sua população, avançar sua tecnologia e lacrar os locais de nascimento de novos demônios. No ano anterior ao lançamento do jogo, Peter Molyneux havia chocado o mundo com o jogo “Populous”, um simulador de deus para computadores em que o objetivo era fortalecer uma civilização para que ela pudesse vencer um povo rival que seguia um deus maligno. Podemos dizer então que “ActRaiser” é a tentativa da produtora Enix de levar esse novo gênero de jogo para um novo público, tornando-o mais acessível, mais rápido e mais dinâmico – e com fases de jogo de plataforma no meio, pra dar uma misturada. Toda vez que sua civilização avança, é hora de assumir novamente aquela estátua e matar mais criaturas religiosas, para depois voltar para o simulador de deus e ajudar seu povo controlando o clima e executando outros milagres bacanas. Quem brilha mesmo é a parte de estratégia, mas é legal saber que existe outro modo de jogo, mais convencional, escondidinho lá te esperando.
É mérito total de “ActRaiser” fazer com que a junção dos dois estilos, tão diferentes entre si, não pareça nem um pouco absurda dentro da proposta e ainda funcione tão bem pra dar uma arejada toda vez que você acha que já cansou do jogo. Chega de plataformas? Rapidinho já é hora de comandar sua civilização. Cansou da parte de estratégia? Loguinho já é hora de matar uns monstrengos. É por isso que “ActRaiser” ainda hoje é o jogo ideal pra toda a galerinha que sofre de déficit de atenção.
Mas você deve estar pensado: como é que a censura da Nintendo of America lidou com esses temas religiosos? Simples: disfarçou o quanto conseguiu, até descafeinar esse café. “ActRaiser” era legal demais – e sucesso demais no Japão – para ser simplesmente engavetado na gringa, então a solução foi chamar o personagem Deus de “Mestre”, dizer que ele era humano, tirar todas as referências a cruzes e Estrelas de Davi, dar ao Satã um nome digno de inimigo de Power Ranger (Tanzra, “O Maligno”), e deixar só as criaturas mitológicas. Com isso a família americana conseguiu enfim dormir tranquila, sabendo que seus filhos estavam dizimando deuses hindus dos quais ninguém vai reclamar e criaturas que por acaso tinham chifres e rabos, mas tudo SEM SEXO, SEM SANGUE e, como diz uma mensagem no próprio jogo, “COM QUAISQUER SEMELHANÇAS COM SISTEMAS DE CRENÇAS REAIS SENDO MERA COINCIDÊNCIA”. Parabéns, Nintendo. Só que não.