Shenmue
Lembro bem da primeira vez que vi “Shenmue” rodando num Dreamcast diante dos meus olhos. Meses e meses de propagandas e notícias não poderiam me preparar para aquele espetáculo: quando o personagem Ryo Hazuki andava em direção ao dojo do seu pai para encontrá-lo sendo torturado nas mãos da máfia chinesa, era como se eu estivesse espiando uma fresta no espaço-tempo rumo ao futuro, e ele era bem mais legal do que lixos como o Virtual Boy tinham me feito imaginar. Os gráficos eram tão impressionantes, a ambientação e a arquitetura tão convincentes, que eu nem me importava com o fato de que a versão em minhas mãos era japonesa e portanto eu não entendia uma mísera palavra do que estava sendo dito. Por dias, alguns colegas e eu exploramos a casa de Ryo (são tantas, tantas gavetas) e a cidade à sua volta abismados com o grau de detalhes, acompanhando senhoras irem e voltarem do mercado, as mudanças climáticas, os guarda-chuvas, as pequenas ruas sem saída com roupas no varal e quintais com equipamentos de jardinagem, tudo sem avançar a história em nenhum momento – guardamos cada diálogo com cuidado apenas para o momento em que a versão em inglês fosse lançada.
Aquilo era verdadeiramente especial, mas para entender o quanto é preciso antes um pouco de contexto: no mesmo ano de seu lançamento, 1999, era lançado também um dos maiores clássicos de RPG de todos os tempos, “Final Fantasy VIII”. Os RPGs estavam começando a dominar o mercado da época, tentando contar histórias cada vez mais sofisticadas, mas patinavam sempre na mesma temática: fantasia medieval ou ficção científica com toques de fantasia medieval. Além da overdose de capa-e-espada, a mecânica sempre envolvia doses cavalares de combates aleatórios pra esticar a experiência – a famosa tática digital de “colocar água no feijão”. Tudo isso sempre dividido em duas partes: a parte de jogo, com gráficos limitados, e a parte de história, com vídeos em computação gráfica que não tinham qualquer relação com o visual dos momentos jogáveis – e eram longas, longas, intermináveis.
“Shenmue” é uma ruptura com tudo isso, só que num momento em que o público não queria rupturas, mas continuações. Sua intenção era contar uma história que se passasse no mundo real, mais especificamente numa recriação virtual da cidade japonesa de Yokosuka em 1986. Houve um trabalho histórico minucioso para levar ao jogo a arquitetura do local, a disposição de suas ruas, o comércio local, e até os fliperamas da Sega lançados na época. O clima da região foi recriado dia a dia para ser fiel ao que ocorrera mais de uma década antes, com dias de chuva, sol, tempo nublado e até neve conforme o jogo adentra o mês de dezembro. Para cada hora de jogatina um dia se passava no mundo virtual, com ciclos de dia e noite, e a obrigação de voltar para cama sempre antes do dia clarear. Cada morador da versão jogo de Yokosuka foi programado para manter uma rotina, ir para o trabalho, fazer compras, visitar amigos, tentar escapar da chuva, etc. Esse cuidado com os detalhes de um cenário plausível, sem castelos ou naves espaciais, era sem precedentes. Simplesmente andar pela cidade era suficiente para sentir que aquilo nunca havia sido feito antes.
Ainda assim, a resposta geral ao jogo foi de que ele era “chato”. Lembro de um amigo ficando indignado porque, ao invés do padrão da época, não era possível entrar em casas aleatórias pela cidade – você podia, no máximo, bater na porta. Não há magia, dragões, combates aleatórios. A maior parte da jogabilidade está em andar pela cidade coletando informações que ajudem Ryo a encontrar uma trilha que o leve ao mafioso que assassinou seu pai (o que envolve frequentar bares noturnos em busca de marinheiros, o que é menos safadinho do que parece tendo em vista que o Ryo é mal encarado pra caralho e nunca ousaria despirocar). Para desespero do público de então, as poucas partes de ação estão apenas nos combates esporádicos em tempo real em que Ryo pode mostrar o que aprendeu com o pai em artes marciais, com mecânica inteirinha tirada de “Virtua Fighter”.
Inicialmente, “Shenmue” seria simplesmente a versão RPG do jogo “Virtua Fighter”, assim como “Panzer Dragoon Saga” era a versão RPG de “Panzer Dragoon”, lançados para Saturn. O problema é que o projeto foi demorando, ficando mais complexo, o Saturn foi abandonado, o projeto foi ficando ainda mais complexo, e aí quase 100 milhões de dólares depois eis que a tal versão de “Virtua Fighter” já não tinha quase nada a ver com a proposta original e acabou saindo para o console seguinte da Sega.
Ainda hoje um jogo custar essa bagatela dá um sustinho, mas na época era simplesmente impensável. Foi o resultado de pegar um dos mais brilhantes desenvolvedores de jogos da história, Yu Suzuki, e dar-lhe carta branca pra fazer o jogo que quisesse. O cara resolveu fazer pesquisa histórica viajando pela China levando toda a equipe de produção, gastou fortunas só no processo de dublagem, e tomou cuidados caros com detalhes que ninguém nem reparou. Some a isso o fato de que o Dreamcast não ia bem das pernas no mundo, assombrado pelo fracasso do Saturn e pela sombra do futuro Playstation 2, e temos a matemática bizarra de que pro “Shenmue” ter dado lucro, cada dono de Dreamcast do planeta teria que ter comprado mais de duas cópias. Aqui é a hora em que eu me retrato enquanto fã: tendo comprado apenas uma cópia, admito não ter feito a minha parte. Sega, me perdoe.
Por trás de todo o primor técnico que custou essa fortuna insana, “Shenmue” conta um épico de artes marciais que dá uma nova mão de tinta num dos temas mais combalidos do pós-guerra japonês: o adolescente que se vê obrigado a seguir os rumos do destino e da tradição para fazer a diferença, enquanto indivíduo, para a sociedade e para o mundo. É a jornada de herói típica, mas com o gostinho oriental de uma cultura que não sabe se abraça as tradições ou se bebe Coca-Cola. Em “Shenmue”, esse modelo ao menos sai da metáfora da capa-e-espada para um contexto mais explícito: Ryo Hazuki é um personagem frio e anti-social que precisa decidir manter a memória do pai (presente especialmente no estilo de caratê que ajudou a criar) ou se abrir para o mundo numa busca individual por vingança, em que vai abandonando a arte marcial do pai em troca de golpes de kung fu que aprende vida a fora – e umas várias latinhas de Coca no processo, que ninguém é de ferro e a marca patrocinou o jogo em sua versão oriental (nos Estados Unidos, os refrigerantes viraram genéricos fictícios – olha só a oportunidade que perdeu a Dolly!)
É claro que o jogo sofre de um bom punhado de clichés, e como toda obra contemporânea de artes marciais ela é obrigada a fingir que ainda NÃO DESCOBRIRAM A PÓLVORA (sempre legal ver a máfia tentando dominar o mundo na base do soquinho, com nenhum revólver à vista), além daquela mania de que TODO MUNDO sabe artes marciais, até o estadounidense esteriotipado que vende cachorro-quente ao som de hip-hop (os japoneses tem uma visão muito engraçada das pessoas do resto do mundo, o que a gente já deveria ter sacado desde que nos deparamos com o Blanka).
Também é óbvio que o ritmo do jogo é mais lento, com ênfase na ambientação, na passagem de tempo e na história. Mas as recepções ao jogo só foram tão mornas porque aquilo era inovador demais – quase tudo que “Shenmue” fez foi adotado muito depois por grandes estúdios, do modo de recriar cidades aos Quick Time Events adaptados de “Die Hard Arcade” para dar uma animada nas sequências não-interativas. Se temos hoje coisas como mundo aberto, as cidades de “GTA”, mecânicas como “Heavy Rain” e “The Walking Dead”, é tudo porque “Shenmue” deu a cara a tapa e abriu caminho pra isso aí.
“Shenmue” sofreu do mesmo mal que o Dreamcast como um todo: era ousado e inovador demais para o seu tempo e, portanto, fracasso comercial. Basta lembrar que já no século passado o Dreamcast tinha internet em todos os aparelhos, jogos exclusivamente online, jogos “casuais” mais curtos eram vendidos mais barato, e havia até mesmo venda em capítulos de jogos seriados – todas práticas que só foram se tornar padrão da indústria de jogos quase uma década depois, com a consolidação do Xbox 360 e do PS3.
Por estar muito à frente do seu tempo, pelas incontáveis noites gastas treinando artes marciais em estacionamentos vazios, por ser meu jogo favorito da vida e por Ryo dar uma pausa em sua sede de vingança para bater um retrogaming bacana no fliperama de Yokosuka, “Shenmue” é meu primeiro PIXEL DAS GALÁXIAS, com uma lagriminha no canto do olho e a esperança real de que a série seja retomada um dia pra saber como termina essa bagaça.
(Toda semana escolhemos um jogo do balacubaco para ganhar o PIXEL DAS GALÁXIAS, o maior prêmio mundial desde o Miss Bumbum 1998)