Heart of the Alien – Another World Parts I and II
Numa época em que o padrão dos videogames eram gráficos compostos por uns poucos pixels coloridos amontoados (que exigiam muita imaginação por parte do jogador), construir gráficos realmente impressionantes era algo que tinha que ser conquistado na unha. Às vezes essa conquista era mérito de um grande artista, capaz de com poucos pixels criar um bigodudo de macacão cheio de personalidade, por exemplo. Mas às vezes era mérito de um grande programador, vencendo as limitações do hardware através de linhas de código inventivas e sofisticadas. É na segunda categoria que está Éric Chahi, francês que colocou seu nome na história com o jogo “Another World” – ou “Out of this World” nos Estados Unidos, pra não confundir com uma novela da época.
Lançado em 1991 para os computadores Amiga e para o Atari ST, o computador pessoal da Atari que salvou a empresa da falência total no final dos anos 80, “Another World” tinha que fazer miséria para conseguir gráficos vetoriais gerados em tempo real em aparelhos tão pouco potentes. O mais impressionante é que Éric Chahi programou tudo praticamente sozinho, encontrando através de tentativas e erros alternativas inéditas na geração de gráficos. A cutscene que abre o jogo já é de tirar o fôlego, com o personagem se movendo de maneira fluida, iluminação bacana, câmeras cinematográficas. Quando a parte jogável enfim começa, a qualidade visual se mantém – por uns 5 segundos inteiros, que é o tempo necessário para que aconteça sua primeira morte.
O protagonista, Lester, aparece na cutscene inicial em seu laboratório, testando algo em seu super avançado computador de tela verde, tomando uma cervejinha de boa na lagoa, quando de repente é misteriosamente teletransportado para… uma lagoa de verdade. O que poderia ser facilmente um comercial televisivo de cerveja é na verdade uma desculpa sem frescuras para atirar esse cientista para dentro de um mundo alienígena e hostil. Por mais que os gráficos fossem impressionantes de se assistir, Éric Chahi, ao contrário de vários outros desenvolvedores famosos, sabe que jogo não é filme e em menos de 1 minuto você já está lá na lagoa alienígena tendo que defender sua vida. Basta passar alguns poucos segundos olhando para o Lester dentro da lagoa, pensando “quando é que esse jogo vai começar” e pronto, tentáculos saem das profundezas e te puxam para o fundo, numa morte relâmpago. Fim.
Não é segredo nenhum que “Another World” é inspirado no clássico de arcade de 1983 “Dragon’s Lair”, o primeiro jogo a ter gráficos em desenho animado, em que você deve assistir à ação do personagem e apertar o botão certo na hora certa para que o personagem não vire farofa – o problema é que absolutamente ninguém te diz que botões apertar e nem quando apertá-los, o que no caso do “Dragon’s Lair” significa ter que enfiar outra ficha na máquina e portanto vender até as cuecas pra chegar a algum lugar. “Another World” não precisa de fichas e tem uma jogabilidade mais tradicional, com o jogador podendo correr, pular, chutar ou atirar em seus inimigos, mas as mortes cruéis e a política de tentar várias vezes até descobrir o que deve ser feito são as mesmas do seu parente distante de arcade. É quase como se Éric Chahi estivesse se vingando do mundo: “já que tive que programar tudo isso na tentativa-e-erro, então os jogadores sofrerão exatamente como eu.” Insira risada de gênio maluco aqui.
Se você não colocar seu direcional para cima dentro do lago, nadando para fora, os tentáculos te pegarão. Legal, aprendi a manha, agora dá pra curtir o jogo. Ao correr então para a direita, uma estranha larva com um dente afiado lhe perfura a perna e a morte é instantânea. Pronto, sua primeira morte veio com 5 segundos de jogo; a segunda demora mais, com cerca de 12 segundos. Na maior parte dessas cenas, o jogador aprende bem rápido: tenho que nadar pra fora, tenho que pular essa larva idiota, etc. Mas a jogabilidade fica completamente truncada quando morre-se o tempo inteiro – todo dano nesse jogo é mortal – e é necessário repetir as cenas até fazê-las a contento. O jogo tem checkpoints generosos numa época em que eles eram praticamente inexistentes, mas prepare-se para ter seu cérebro derretido pela repetição de um ou outro trecho mais complicado.
Embora todo esse processo de tentativa-e-erro seja frustrante e faça com que alguns jogadores prefiram garfo no olho, muita coisa é ganha com essa escolha de design. Pra começar, não há necessidade de qualquer indicador de energia, vidas, número de tiros ou qualquer coisa do gênero atrapalhando a tela. É o que se chama de “no HUD”, e que tem voltado à moda nos dias atuais por permitir uma imersão mais completa, sem indicadores visuais de que se trata de um jogo. Além disso, a mecânica sem piedade faz com que se tema o mundo apresentado. Por tratar-se de um planeta alienígena, nada no cenário é compreensível e absolutamente tudo pode te matar, exigindo que cada passo seja dado com imenso cuidado e certa dose de pavor, o que só contribui para a ambientação. E, por fim, morrer a cada par de segundos faz com que todas as conquistas do jogador sejam suadas e portanto ganhem aquele sabor de que você deveria estar no Livro dos Recordes por fechar essa bagaça.
Tudo isso funciona ainda melhor por conta da escolha narrativa de Éric Chahi: a história não é contada através de diálogos ou de textos, tendo em vista que os alienígenas falam uma língua diferente do protagonista Lester. Mesmo quando o cientista e um alienígena se ajudam, o fazem através de gestos ou grunhidos, com comunicação limitada (o que assumidamente inspirou um dos meus jogos favoritos na vida, “ICO”, de PS2). Nada nesse mundo extraterrestre é explicado ou esclarecido. Não existem quatrocentas páginas de texto explicativo sobre a história dessa civilização como virou moda nos joguinhos recentes, e isso é excelente para construir um mundo incompreensível, hostil e completamente alheio à tentativa de controle do jogador – além de ser útil para não matar ninguém de TÉDIO. A abordagem minimalista trata os jogadores como gente grande, sem segurar pela mãozinha, sem explicar tudo que acontece, sem interromper o jogo para algum informe desnecessário – o jogo só interrompe pra te matar, mesmo. Se esse é o preço por um jogo que não me trate como imbecil, então eu pago fácil.
Mas é claro que às vezes mesmo em toda sua boa intenção o jogo se embanana. Quem assistir a um vídeo dele sendo terminado sem mortes (o que leva no máximo uns 20 minutos pra quem sabe o que está fazendo) vai ter duas impressões: a primeira é que nem parece que o jogo é difícil e terrivelmente frustrante, cheio de tentativa-e-erro; a segunda é que o jogador vai parecer ter poderes de premonição em nível Mãe Dináh, porque o jogo frequentemente exige que você faça coisas aparentemente sem sentido para evitar uma morte bem mais pra frente. Por exemplo: você pode passar um tempão jogando até se deparar com uma morte instantânea nas mãos de um alienígena que bloqueia uma porta, para só então parar pra pensar e perceber que você teria que ter derrubado um lustre na cabeça dele há uns 15 minutos atrás, quando passou por esse lustre uns andares acima. Claro que, naquela hora, você NÃO TINHA COMO SABER que havia um inimigo a ser esmagado com esse lustre lá embaixo, né. Suspiro.
Pela sua engenhosidade de criar gráficos vetoriais do nada em qualquer sistema meia-boca, “Another World” recebeu versões em tudo quanto é videogame da época, mas a versão definitiva é com certeza a de Sega CD, de 1994, não apenas por ter a melhor qualidade na trilha sonora, mas também por conter uma continuação semi-oficial do jogo original. Semi-oficial? Pois é, não sei como dar um nome melhor. O caso é que Éric Chahi escreveu a sequência, chamada “Heart of the Alien” (e que dá nome à coletânea dois dos jogos lançada para o Sega CD), mas os desenvolvedores fizeram o que quiseram com o roteiro, entregando gráficos e uma jogabilidade que deixaram Chahi puto o bastante para excomungar a sequência, tratando-a como “não canônica”. O segundo jogo não é tão bom mesmo, isso é fato, mas além de ser legalzinho, foi lançado oficialmente e continua diretamente a história do primeiro, dessa vez controlando o alienígena, não Lester. Ou seja, será para sempre canônico no meu coração.