Final Fight
O primeiro “Street Fighter”, lançado em 1987 pela Capcom, era um jogo de luta mano-a-mano para arcades bem convencional. O jogador controlava o lutador Ryu e enfrentava, um de cada vez, uma série de inimigos esquecíveis controlados pelo computador em duelos de artes marciais. Caso surgisse um desafiante humano, ele controlava uma cópia de Ryu com um visual levemente diferente chamado Ken, com os mesmos golpes e movimentos. Volta e meia, enquanto você enchia seus inimigos de sopapos, surgia um de três possíveis golpes especiais que conhecemos bem – uma magia lançada com as mãos, um gancho que voava pelos ares ou um helicóptero feito de PERNAS. A graça estava em descobrir quais eram os comandos que faziam brotar essas habilidades secretas, já que não havia qualquer indicação no arcade nem manual de instruções.
De inovador na máquina, o diferencial era que o botão de soco e o botão de chute reagiam de maneira diferente dependendo da força com que eram pressionados: apertar de leve gerava um soco fraco porém rápido, apertar com mais ímpeto gerava um soco de força e velocidade médias, e DESTRUIR o botão liberava uma PORRADA poderosa. O sistema de botões quebrava tanto e era tão difícil de dominar que eventualmente a Capcom passou a lançar as máquinas com 6 botões, um para cada intensidade de golpe, e a gente se acostumou a ter trocentos botões à disposição.
O jogo era digno, mas em 1987 ninguém queria saber de outra coisa que não fosse “Double Dragon“, o nosso Pixel das Galáxias que consagrou para sempre o gênero beat ‘em up e foi um baita fenômeno cultural. Lutas um-contra-um pareciam brincadeira de criança perto da pancadaria COMENDO SOLTA nas ruas cheias de punks virtuais. Por isso, a sequência lançada dois anos depois (intitulada então de “Street Fighter ’89”) recebeu ordens superiores de ser transformada num jogo de pancadaria múltipla ao ar livre para tentar conquistar um pedacinho desse mercado. Foi assim que a Capcom, meio a contragosto, criou nosso jogo final da série “Te pego lá fora“: o emblemático “Final Fight”.
Memória e vingança
Depois do sucesso estrondoso de “Double Dragon”, a Capcom não tinha pretensões de reinventar o gênero, queria apenas refiná-lo, oferecer uma experiência similar mas maior e mais empolgante. Começou aumentando a oferta de personagens jogáveis: se no jogo da Technos temos dois personagens virtualmente idênticos em busca de sua amada num poliamor prafrentex, em “Final Fight” temos três personagens totalmente diferentes em termos de visual e jogabilidade: Mike Haggar, prefeito da cidade e que teve sua filha raptada; Cody, o namorado da garota refém; e Guy, o amigo ninja de Cody que foi dar uma forcinha. A tríade oferece uma enorme variedade de combinações no jogo cooperativo, tornando a experiência mais profunda e interessante a longo prazo.
Mike Haggar é o único personagem que dá uma piscadela para o fato de que estamos jogando uma continuação do “Street Fighter” de 1987: o fortão é descrito como um ex-participante do campeonato de lutas do jogo original, agora aposentado para tornar-se prefeito de Metro City. Pense bem: é como se um dia o Kimbo Slice se tornasse prefeito de Nova Iorque. Super normal. Fora isso, a única relação direta entre os jogos é que compartilham a barra de energia para todos os personagens, mesmo os não-jogáveis.
Curiosamente, é nessa barra de energia que se encontra aquilo que eu considero a maior inovação de “Final Fight”: todos os inimigos são tratados como personagens, com energia própria que vai sendo minada com as porradas e até mesmo um NOME que os identifica. Ao invés de socar um vilão genérico, cada adversário que recebe um golpe tem seu nome colocado na tela imediatamente e passa a ser alguém, ganha um traço de identidade. Mesmo quando os inimigos possuem um visual idêntico e diferem apenas na cor básica da vestimenta, ver que cada um tem um nome diferente faz com que se tornem verdadeiramente distintos. Isso permite que surjam pequenas narrativas inesperadas conforme o jogo se desenrola: Roxy e Poison são duas personagens iguais, que se diferenciam apenas pela cor de cabelo, mas basta que eu perca uma vida para a Roxy e não para a Poison para criar uma raiva específica por ela; na próxima vez que a Roxy me encurralar num canto, isso se somará à minha relação anterior com ela e meu ódio só crescerá. Inimigos genéricos começam a fazer parte de uma história maior, de longa duração, que engloba todas as vezes em que joguei “Final Fight” na vida. Pessoalmente acho o inimigo chamado Holy Wood um saco de enfrentar, mas tenho todo um carinho inexplicável por sua variação bege e bigoduda chamada El Gado – um pouco pelo bigode, muito pelo nome incrível.
Dar nome aos bois faz com que “Final Fight” consiga muito usando muito pouco. Os sub-chefes são sempre iguais mas possuem cinco variações de cores, com nomes que indicam que fazem parte de uma mesma família: temos Andore, Andore Jr,. Father Andore, Uncle Andore e Grandpa Andore. O jogo não consegue decidir se Andore é nome ou sobrenome, mas essa sensação de que você está batendo em familiares e as histórias que você passa a ter com um e não com outro tornam o mundo de “Final Fight” mais vivo e plausível, algo que parece existir para além dos limites da tela quando o jogador não está segurando o controle.
Temos aqui a possibilidade de uma constante narrativa de vingança: basta morrer nas mãos de um Andore para que você não veja a hora de enfrentar novamente seu nemesis em uma próxima jogatina, ou despeje sua fúria em um dos membros de sua família. Se “Shadow of Mordor” de 2014 ganhou tantos prêmios com sua mecânica de nomear inimigos e incentivar a vingança, a ideia já está aqui em “Final Fight” ainda que em versão externa ao jogo – é o jogador quem cria essa narrativa através de sua experiência, mesmo que ela não faça parte da história escrita pelos criadores.
Claro que tudo isso só funciona porque o combate contra esses inimigos acontece com uma jogabilidade refinada que tornou-se imediatamente padrão para o gênero. Inspirado nos golpes especiais semi-aleatórios do primeiro “Street Fighter”, os personagens jogáveis possuem uma habilidade poderosa na manga pra ser usada nos momentos de apuro, e que para ser usada cobra um preço comendo um pedaço da barra de energia do jogador. É assim que começou essa tradição de que golpes mais fortes precisam ser podados, equilibrados, e que escolher usá-los é uma gestão de recursos: é preciso calcular se o gasto de energia ao executá-los compensa a energia que se perderia ao enfrentar os inimigos na tela de cara limpa com os golpes tradicionais. Esse cálculo é constante porque o jogo coloca frequentemente mais de 10 inimigos ao mesmo tempo no cenário, gerando um caos que muitas vezes só pode ser minimamente controlado com um golpe especial. Outras mecânicas que se tornaram padrão são o arremesso como golpe final do combo e o ato de agarrar os inimigos ser automático quando se anda contra eles, tudo para tornar a luta mais rápida, frenética e incentivar o jogador a combater muitos adversários ao mesmo tempo, arremessando uns contra os outros.
De volta ao original
O jogo foi um enorme sucesso nos arcades e rapidamente ganhou uma versão muito mequetrefe para o Super Nintendo. O console da Nintendo não tinha como aguentar a belezura que a Capcom havia criado, então passaram a tesoura: a infinidade de cenários deslumbrantes foi limitada, perdendo algumas fases; Guy foi arrancado do jogo, deixando apenas dois personagens jogáveis; e o jogo se tornou uma experiência para apenas UM jogador. A sede for “Final Fight” dentro de casa era tanta que a Capcom não teve vergonha de lançar um jogo cuja graça principal está na experiência MULTIJOGADOR em versão picotada, limitada e SOLITÁRIA. Parabéns aos responsáveis.
Ainda assim, a jogabilidade refinada e os inimigos memoráveis tornaram “Final Fight” um sucesso no Super Nintendo, que ganhou duas sequências exclusivas nos anos seguintes. Mas foi apenas em 1993 que o jogo original ganhou sua versão definitiva no Sega CD, com vídeos de abertura, animações refinadas, todo o conteúdo da versão dos arcades e trilha sonora (que é completamente esquecível) em uma versão orquestrada um pouquinho mais competente.
Quando a febre por beat ‘em ups deu uma acalmada, a Capcom voltou à ideia original de criar combates mano-a-mano com “Street Fighter 2”, em 1991. Em comum com “Final Fight”, além das fases bônus, sobrou a riqueza de personagens bizarros de visual extravagante, e um mundo que parece existir para fora dos limites do jogo. Não foi à toa que “Street Fighter” gerou uma infinidade de desenhos e filmes nos anos seguintes, e várias das suas sequências para videogame recuperaram personagens desse primeiro “Final Fight” – de Haggar, Cody e Guy até inimigos como Sodom e Rolento (que em alguns especiais chega até a receber a ajuda de El Gado, o mito).
“Final Fight” é o começo de uma espécie de multiverso, de personagens que transitam entre jogos de diferentes estilos, e que permite aos fãs não apenas reconhecerem os inimigos pelo nome de uma jogatina para a outra, mas também de um jogo para o outro, criando uma relação com os personagens que poucas franquias conseguiram conquistar.