GoldenEye 007
Sempre acho surpreendente o número de grandes game designers da indústria de videogames que admitem abertamente jogar pouco ou nenhum dos novos lançamentos. Na minha cabeça os grandes desenvolvedores passariam os seus dias mergulhados em todos os jogos de videogame em que pudessem colocar suas mãos, absorvendo ideias, aproveitando soluções e bolando inovações, mas pelo jeito não é o que acontece. Entrevista após entrevista, sempre me deparo com o contrário: um forte distanciamento dos jogos alheios e um conhecimento das inovações da indústria através de um mero “ouvir dizer”. É claro que sempre existiram os estúdios interessados em fazer um simples clone de algum jogo ou gênero específicos e para isso devem jogar e destrinchar o código daquilo que desejam imitar, mas os criadores mais inovadores jogam pouco e possuem pouco contato com o que acontece dentro da indústria. Vivem num mundo à parte.
Acredito existir um motivo para isso. Quem está muito dentro da coisa, jogando tudo que é lançado numa plataforma, acaba ficando preso a uma visão muito formulaica. Surge nitidamente uma visão do que os jogos fazem ou não fazem, do que é possível ou impossível, recomendável ou evitável. Os jogos acabam parecendo um conceito já inteiramente definido em que o criador deve mexer apenas nos detalhes. Pergunta-se menos a pergunta derradeira: “o que é que os jogos DEVERIAM ser capazes de fazer?”.
Na época do Atari 2600, a maior parte dos desenvolvedores de jogos nunca havia criado jogos antes e possuíam um conhecimento muito limitado do que estava disponível no mercado. Ninguém sabia o que dava ou não pra fazer com essa mídia tão nova. É daí que surgiam projetos estranhos e megalomaníacos, como “Adventure” ou “River Raid“. Gente de todas as áreas queriam tentar a sorte nesse terreno de possibilidades ilimitadas, mesmo não fazendo a menor ideia de como começar: Shigeru Miyamoto era ilustrador, Yu Suzuki era músico e programador de sistemas, por exemplo.
Quanto mais a indústria foi avançando, mais foi se tornando um terreno inóspito para programadores sem experiência com videogames. Estúdios começaram a precisar de mais e mais funcionários, uma mudança muito grande da época do Atari 2600 em que os jogos eram feitos por um único programador solitário. E quanto mais funcionários eram necessários e mais dinheiro era gasto na produção de jogos, mais parecidos os jogos iam se tornando, seguindo fórmulas para tentar ganhar mais dinheiro e diminuir as chances de fracasso. Mas isso não vale para os grandes jogos, claro.
A Rare, estúdio dos irmãos Tim e Chris Stamper responsável por alguns dos melhores jogos do Nintendinho e do Super Nintendo, sempre apostou na estratégia bizarra de formar grupos de programadores sem qualquer experiência prévia com videogames e ver que tipo de inovação surge de um grupo que não sabe quais são as fronteiras, as limitações e as expectativas do mercado. Foi de um desses grupos de dez novatos que surgiu um dos jogos que revolucionou o mundo dos tiroteios em primeira pessoa: “GoldenEye 007”.
Planejado inicialmente como um jogo de plataforma 2D para Super Nintendo assim que a Rare comprou os direitos do filme, o atraso no projeto foi suficiente para que o estúdio recebesse o protótipo do que viria a ser o Nintendo 64 para começar a criar jogos para o seu lançamento. E lá foram os novatos começar tudo do zero, dessa vez tornando o jogo inteiramente em 3D.
Até então os jogos de tiro em 3D eram exclusividade dos computadores, feitos para se jogar com mouse e teclado. A utilização do mouse como mira para as armas era unanimidade e a ideia de que um controle pudesse simular essa experiência era loucura – todas as tentativas eram falhas miseráveis. Além disso, esses jogos de tiro tinham duas características marcantes: eram quase sempre fantasiosos, com monstros e armas exageradas, e o personagem não passava de uma CÂMERA VOADORA com uma arma na frente. A ideia de jogos em primeira pessoa sempre misturou-se com o fascínio dos anos 80 pela ideia de “realidade virtual”, de modo que os jogos tentavam fazer com que o jogador se sentisse dentro da aventura sem intermediários. Ao jogar “Doom”, por exemplo, é você quem está lá segurando a arma, não existe um personagem de verdade com o qual você compartilha a experiência. Mesmo em “Half-Life”, lançado um ano depois de “GoldenEye”, o personagem Gordon Freeman é só uma desculpa para que o jogador esteja lá; ele não fala, não reage, não interage, é uma planta.
Mas os programadores inexperientes da Rare não faziam ideia disso. Estavam criando um jogo sobre James Bond, o espião mais famoso do planeta, e tudo que queriam era fazer o jogador encarnar Bond durante a jogatina, não a si mesmos. Deram a James Bond um corpo no jogo, e antes de começar cada missão uma câmera circunda o corpo e mergulha DENTRO DA CABEÇA do espião inglês. É quase uma experiência mística de encarnar num corpo alheio – bizarro e chocante para a época, mas uma decisão simples e poderosa. Segundos depois, o jogador já solta sem querer um “eu sou o James Bond”, começa a jogar furtivamente e pronto: “GoldenEye 007” já fez história.
No começo do desenvolvimento, a Rare mostrou para seu grupo de novatos um jogo de tiro em primeira pessoa para consoles de mesa, não para computadores, para que eles soubessem mais ou menos o que se esperava deles. Era “Virtua Cop” num Sega Saturn, um jogo de tiro-sobre-trilhos, em que o personagem faz um caminho pré-definido não controlado pelo jogador, como se estivesse numa montanha russa, e cabe ao jogador apenas atirar nos inimigos que aparecem na tela evitando meter bala nos civis. A pirralhada da Rare não entendeu nada: por que raios eles iriam querer fazer um jogo em que não dá pra controlar o personagem? Mal sabiam eles da dificuldade de se controlar personagem e mira usando um CONTROLE ao invés de mouse, mas em sua total e completa IGNORÂNCIA resolveram arriscar.
As soluções que eles encontraram pra fazer essa ideia insana funcionar eram lentas e difíceis de programar. O jogo foi demorando para ficar pronto e começou a bater o desespero porque eles iriam perder a chance de lançar o produto enquanto o filme ainda estava em alta. Mas a Rare não seria um dos estúdios mais importantes da história se eles ficassem se preocupando com prazos: os irmãos Stamper pediram que os desenvolvedores desencanassem de tentar acompanhar a onda do filme, já que a qualidade do jogo se sustentaria sozinha. Essa tranquilidade fez o jogo demorar ainda mais para ficar pronto. Chegou uma hora em que ficou claro que “GoldenEye 007” não ficaria pronto a tempo de ser um dos jogos de lançamento para o Nintendo 64, como previsto; começou até a bater o cagaço de que o jogo não saísse antes do PRÓXIMO filme de James Bond, o que aí sim seria um desastre completo.
Isso porque o time da Rare resolveu fazer um jogo que seguia o filme à risca, missão por missão, tirando até mesmo fotos das filmagens para recriar os ambientes; a jogatina é toda entrecortada por momentos de narração e interação entre os personagens que recriam as cenas mais importantes do filme; e até mesmo os objetivos em cada fase (que vão muito além de só matar todo mundo, como era o padrão do gênero) são diretamente tirados da trama da obra original. Se por um lado essa decisão é muito frustrante para quem não viu o filme (sem conhecer a referência, algumas cenas não fazem sentido e às vezes nem dá pra saber qual é o objetivo da fase), por outro é uma conquista incrível ser capaz de recriar a complexa narrativa do cinema dentro de um jogo de tiro em primeira pessoa, ainda que através de curtas cenas e NENHUMA dublagem, porque os cartuchos de Nintendo 64 não eram grandes o suficiente para isso (motivo pelo qual “Final Fantasy” não saiu para o console e acabou o condenando à morte, mas isso é pra outra hora). O único porém é que vários dos personagens do filme participam ativamente do jogo como personagens não-jogáveis, auxiliando o jogador ou sendo parte fundamental de algum objetivo das fases (tendo que ser protegidos ou guiados para algum lugar específico, por exemplo), mas não havia inteligência artificial disponível para que esses personagens não fossem COMPLETOS IMBECIS. Fica difícil proteger a personagem Natalya da morte, por exemplo, quando fica óbvio que algum sádico colocou em seu código uma incontrolável TENDÊNCIA SUICIDA. Ainda assim, era muito impressionante ter que interagir com esses personagens de modo a manter a narrativa do filme.
Só quando a história já estava inteira lá, recontada dentro de um jogo de tiro, e a jogabilidade dava conta do tiroteio sem ter que recorrer ao mouse (através de uma mira semi-automática inteligente, além da possibilidade de um “controle de precisão” quando o jogador precisa acertar tiros em locais muito específicos, como a cabeça de inimigos) é que o pessoal da Rare pensou: “hmm, e se a gente colocasse um multiplayer?” Aí lá foi um único programador, de última hora, enfiar um modo multi-jogador só porque seria divertido, se aproveitando da possibilidade de 4 controles do Nintendo 64. Ele dividiu a tela em quatro partes, diminuiu o poder gráfico de cada pedaço para ajudar na fluência do jogo, e criou nada mais nada menos do que os modos de jogo que viraram PADRÃO da indústria de tiros para sempre. Coisa simples.
Em sua coragem ingênua de quem não sabe o que é ou não impossível, o time de iniciantes da Rare levou muito mais tempo do que seria normal para concluir seu jogo, mas chutou sem querer cada uma das convenções do gênero no processo, nos entregando um jogo de tiro em que o personagem é MUNIDO DE UM CORPO e não apenas uma câmera voadora, com OBJETIVOS que não são apenas matar todo mundo (aliás, em geral é melhor dar uma de espião e NÃO MATAR NINGUÉM, passando na miúda), uma NARRATIVA acontecendo durante as fases que muda ou acrescenta objetivos dependendo do ocorrido, um MULTIPLAYER que virou padrão da indústria, e o mais importante de tudo: a possibilidade de se aproveitar jogos de tiro usando um CONTROLE de videogames, sentadão no sofá. É só porque esse bando de malucos provaram em sua ignorância que controles eram viáveis que hoje temos centenas de “Call of Duty” por ano – que aliás, provavelmente seriam mais inovadores se aceitassem em suas fileiras um ou outro programador que não tenha ideia do que está fazendo.