Samba de Amigo
A Sega sempre esteve empenhada em levar seus arcades fantásticos para dentro de seus consoles de mesa do momento, desde os tempos de Master System. Volta e meia algo bacana, mas não essencial, perdia-se nesse processo: o controle feito com o balanço do corpo em “Hang-On”, uma cabine que se movimenta junto com o jogo em “Space Harrier”, o manche de “Virtua Fighter”. Mas quando os acessórios do arcade eram essenciais ao próprio conceito do jogo, a Sega não estremecia: modificava a tecnologia, tornava os periféricos acessíveis e colocava à venda. Foi assim com suas famosas pistolas de luz, o controle de dois analógicos para os robôs de “Virtual-On”, a vara de pescar para “Sega Bass Fishing”, as maracas de “Samba de Amigo” e muitos outros – mas esses dois últimos, a vara de pescar e as maracas, acabaram mudando os videogames para sempre, ainda que nas mãos de uma empresa rival.
O controle em formato de vara de pescar lançado para Dreamcast seria tão tolo quanto a ideia de pescar peixes virtuais em lagos virtuais num jogo virtual – se não fosse pelo simples fato de que ele reconhecia com enorme precisão os movimentos horizontais e verticais realizados pelo jogador. Apesar de em teoria só funcionar em jogos de pesca, o acessório conseguia também controlar os movimentos dos golpes de espada no sensacional “Soulcalibur”, mostrando o potencial da tecnologia. Poucos meses depois foi a vez de “Samba de Amigo” se aproveitar dessa nova possibilidade, aperfeiçoar os detalhes técnicos e lançar dois periféricos com aparência de maracas que reconheciam a movimentação do jogador através de um pequeno sensor em formato de barra.
Ao preço de 80 doletas, os controles em forma de maracas eram um pequeno milagre moderno. Na época, esse tipo de tecnologia só era esperada em arcades caríssimos, nunca ao alcance dos bolsos de qualquer jogador médio. Como tantas outras coisas no Dreamcast, sempre tão à frente do seu tempo, as maracas acabaram pavimentando o caminho: em cinco anos se iniciaria a febre por jogos musicais com instrumentos a serem adquiridos à parte, como guitarras e baterias; em seis anos, surgiria um console da rival Nintendo inteiramente controlado por movimentos de um bastão similar ao acessório da Sega. Enquanto o Dreamcast – e, por consequência, suas maracas – foi um fracasso de vendas, seis anos depois a Nintendo teria no Wii e sua tecnologia de leitura de gestos o videogame mais vendido de todos os tempos.
É no mínimo curioso que esse pontapé tecnológico irremediável na história tenha acontecido através de um jogo tão casual quanto “Samba de Amigo”. Não há nada sério a seu respeito, a não ser talvez as pinceladas de etnocentrismo e racismo que compõe o pacote. Uma simples descrição do jogo já é suficiente para perceber o absurdo e seus abismos: o jogador deve controlar um MACACO DE SOMBREIRO, portando MARACAS, dançando ao lado de mulatas sambistas e um travesti em roupa de onça, num cenário de carnaval carioca, ao som de MACARENA ou Ricky Martin – tudo sob um título que invoca um SAMBA que não está em lugar nenhum para ser encontrado.
Se os japoneses notoriamente já apresentam alguma dificuldade em lidar com temas culturalmente ocidentais na hora de criar seus jogos, “Samba de Amigo” é o choque cultural por excelência: uma ausência absoluta de compreensão das diferenças entre o Brasil e o restante da cultura latina, das nossas sensibilidades e das nossas questões étnicas e sociais. É um amontoado de esteriótipos e preconceitos numa intensidade tal que é simplesmente impossível não gargalhar da confusão apresentada. É daqueles casos em que o resultado final é tão exageradamente torpe que não consegue sequer ser nocivo – não passa de uma caricatura tão estabanada que só resta rir do desastre.
Até a música principal do jogo, “Samba de Janeiro”, é uma confusão risível-porém-charmosa. Trata-se de uma música alemã criada especialmente para agradar aos gringos nas baladas da Europa com algo que julgam ser “um toque de brasilidade”, e que não passa de uma enganação com meia dúzia de frases soltas em português. É como se tivessem arrancado do samba toda a sua complexidade, suas contradições internas, suas ambiguidades, e conseguido com isso uma versão mastigada e vomitada totalmente inóqua. Saca só:
Mas por trás das músicas não-brasileiras e da maçaroca cultural, dá pra encontrar um puzzle refinadíssimo e difícil pra diabo, mesmo sem usar as maracas – o jogo ainda é aproveitável usando um controle de Dreamcast convencional, trocando a leitura dos movimentos por apertar o direcional e os botões nos momentos certos. Cada bolinha azul que atravessa a tela deve virar um movimento (ou um botão apertado) quando atinge os anéis coloridos fixos, e nas dificuldades mais altas tem mais bolinha azul na tela do que em muito jogo de navinha de respeito, fazendo com que cumprir os desafios (muitos dos quais exigem uma precisão de 100%) seja tarefa apenas para uns poucos Cavaleiros do Zodíaco capazes de enxergar na velocidade da luz. A mecânica é desafiadora e divertida, os controles de movimento são além de tudo engraçados e responsivos, e o resultado é um jogo que por trás da cara de PROCESSO JUDICIAL ainda se mantém firme e forte até hoje – tanto é que foi relançado para Wii recentemente, com uns adendos para deixar o controle da Nintendo mais com cara de maraca; e a franquia continua sendo lembrada em todos os jogos de corrida da Sega mesmo quando outras supostamente mais importantes são jogadas pra debaixo do tapete.
Tudo porque esse joguete aqui criou um legado. Por dentro de cada “Guitar Hero”, de cada Wii e de cada Kinect desse mundo, mora o espírito melancólico e ligeiramente encachaçado de um macaco de sombreiros e maracas e seu amigo travesti chamado “Rio”.