Dragon’s Lair
Em 1983 os arcades de todo o mundo recebiam “Mario Bros.”, jogo da Nintendo de tela única em que Mario e seu irmão devem livrar os esgotos de uma invasão de tartarugas. Seu visual simples e colorido, base do que seria a continuação “Super Mario Bros.” para Nintendinho dois anos depois, funciona como um bom exemplo do que era possível se encontrar na época nos jogos de arcade.
Dá pra imaginar, então, o ABSURDO que era surgir algo em 1983 que ao invés de uns pouco pixeis tinha visuais comparáveis aos melhores desenhos animados da Disney. Essa BRUXARIA só era possível em “Dragon’s Lair”, arcade com gráficos inteiramente animados por Don Bluth, um antigo desenhista da Disney que montou um estúdio na tentativa de fazer seus próprios longa-metragens. Famoso pelo desenho “Um conto americano” em parceria com Steven Spielberg, Don Bluth foi escolhido a dedo para a inacreditável façanha de realizar um desenho animado jogável e, com isso, concretizar o sonho MOLHADO do programador Rick Dyer.
Rick Dyer se apaixonou por “Colossal Cave Adventure”, um jogo de aventura puramente em texto criado em 1976, e decidiu criar uma versão visual para ele. Mas ao contrário de “Adventure“, jogo de Atari 2600 que tenta essa mesma empreitada, Rick não queria um visual PORCO e tampouco abrir mão dos detalhes da história contada. Seu sonho era um “Colossal Cave” que trocasse o texto por gráficos realistas. Como um sonho que se sonha só é apenas um sonho biruta, o máximo que Rick Dyer conseguiu foi trocar o texto por uma narração que acompanhava uma ou outra imagem estática de qualidade duvidosa. Já que não havia tecnologia na época para realizar sua visão, tentou criar uma série de engenhocas que passavam uma foto após a outra dependendo das escolhas do jogador. Com aparência de trabalho de feira de ciências de pré-escola, o projeto de Rick Dyer era motivo de piada e não recebeu qualquer apoio de desenvolvedores – até o surgimento do LaserDisc injetar nova vida em sua criação.
O poder do LaserDisc
O LaserDisc era um aparelho do final dos anos 70 capaz de ler vídeo e áudio simultaneamente de dentro de um CD gigantão, quase do tamanho de uma pizza. Não tinha nenhuma das mordomias com que a gente se acostumou no DVD (interatividade, menus, legendas), mas era muito superior em qualidade às fitas VHS que se utilizava na época. O único problema dessa nova tecnologia era CUSTAR OS OLHOS DA CARA. Levou muitos anos para que os aparelhos ficassem minimamente acessíveis para os consumidores, e ainda assim eram artigo de luxo. Some isso ao fato de que era impossível gravar qualquer coisa da sua televisão com um LaserDisc, coisa corriqueira para os donos de VHS, e podemos entender o motivo do formato nunca ter se popularizado.
Mas a tecnologia desses CDs era tudo que Rick Dyer precisava para provar que sua obra era possível. Seu projeto foi recebendo mais apoio e aos poucos se tornando mais ambicioso. Deixou de ser uma aventura com comandos de texto e passou a ser um jogo de ação levemente inspirado no ambiente de fantasia do “Colossal Cave” original, até por fim tornar-se um desenho animado bonachão em que, a partir dos comandos do jogador, o resultado era modificado na tela em tempo real.
Em teoria, “um desenho animado em que os comandos do jogador mudam o resultado em tempo real” parece a descrição de qualquer jogo de videogame do planeta, mas esse nível de desenho animado era impensável para sua geração. Não à toa “Dragon’s Lair” foi um sucesso imediato, com longas filas mesmo com sua ficha custando o dobro dos arcades convencionais (afinal, alguém tinha que bancar o alto custo de produção, o LaserDisc dentro da máquina, e a manutenção constante que a tecnologia necessitava). Aquele parecia o próximo passo da indústria, a evolução dos videogames, o futuro do entretenimento. O próximo jogo animado por Don Bluth, “Space Ace”, saiu logo depois. Foi um fracasso retumbante, como todos os outros jogos que tentaram seguir a mesma onda nos meses seguintes. Em um ano todas as máquinas de “Dragon’s Lair” já estavam completamente abandonadas, com relatos de gente comprando os arcades velhos apenas pra arrancar o aparelho de LaserDisc de dentro e usar na televisão. Quando o futuro enfim chegou, algumas gerações de videogames depois, o gênero inaugurado por “Dragon’s Lair” não foi lembrado como nada além de uma grande piada. O que raios aconteceu?
Me engana que eu gosto
Em qualquer videogame, o jogador dá um comando e então algo acontece imediatamente dentro do jogo. Essa sensação de controle é essencial para que o jogador sinta-se responsável por resolver os problemas propostos ou sinta-se parte daquela narrativa apresentada. Em “Super Mario Bros.”, por exemplo, basta apertar o botão de pulo e Mario pula; com o botão de corrida, ele corre. Estamos no controle do personagem. Logo na primeira tela, os criadores do jogo esperam que você pule em cima de um inimigo (um Goomba) para matá-lo, é essa a ação CORRETA a se fazer. Caso faça direito, o inimigo morre; caso pule meio destrambelhado e fora de tempo, Mario é quem acaba morrendo. Mas se quiser, o jogador pode fazer um sem-número de outras ações inúteis: ficar parado, correr para o lado errado, pular por cima do Goomba e deixá-lo para trás, etc. Nenhuma dessas ações é o que você deveria estar fazendo, mas o jogo te dá plena possibilidade de romper as expectativas e ficar girando como um idiota se você assim desejar.
“Dragon’s Lair” não pode se dar esse luxo. Para ter aquele visual espetacular, cada ação do personagem deve ser desenhada e animada previamente por Don Bluth, algo que chamamos de “FMV”, ou “Full motion video”, uma sequência em vídeo pré-determinada. Então os animadores só podem incluir no jogo duas possibilidades para cada desafio: uma animação para caso o jogador acerte e uma animação para caso o jogador erre. Se acertar o golpe no dragão, o jogo passa um vídeo da criatura morrendo; se errar, passa o vídeo do dragão devorando o nobre herói. Todas as outras possibilidades INÚTEIS são retiradas do jogo, então não dá pra andar na direção contrária, ignorar o inimigo ou ficar parado. Na teoria, é como se em “Super Mario Bros.” você só pudesse fazer a ação certa ou a errada, sem todas as outras escolhas que no fundo não mudam nada no andamento do jogo. Mas na prática, é justamente essa sensação de que posso fazer coisas inúteis a qualquer momento que passa a ilusão de estar no comando do personagem. A gente quer sentir que PODE SER INÚTIL se quiser.
Por isso, rapidamente os orgasmos causados pelo visual de “Dragon’s Lair” deixaram de ser o suficiente para apagar a sensação de ausência de escolhas que o jogo passava. Quem vai para um arcade jogar não está muito interessado em gastar a maior parte do tempo assistindo a um personagem fazer tudo sozinho e só conseguir interagir nos momentos cruciais. A vontade, por mais bizarro que pareça, é de conseguir interagir nos momentos que menos importam, porque isso nos leva a crer que fomos NÓS quem decidimos tomar as ações importantes depois. É uma ilusão de liberdade. Podendo fazer um monte de coisas inúteis, quando o jogador enfim faz aquilo que deve fazer a sensação é de que sua ação foi por livre e espontânea vontade. Podendo apenas fazer a coisa certa, o jogador se sente completamente engessado – ao ponto em que começam a surgir os brados de que “aquilo não é um jogo”. A reclamação é mais sobre a sensação do que sobre a estrutura de “Dragon’s Lair” e, ainda que injusta, soterrou todos os jogos futuros que seguiram a mesma linha.
Jogando no escuro
Uma das coisas mais estranhas de “Dragon’s Lair” é que o jogo nunca conta para o jogador quando é que ele está no comando e quando é que apertar um botão terá qualquer resultado. Assim que o jogo começa, o jogador tem à sua disposição um manche analógico que pode ser empurrado em qualquer direção – mas que NÃO MOVIMENTA O PERSONAGEM, que já começa andando sozinho – e um botão de “ação”, que ao ser apertado NÃO FAZ COISA NENHUMA. De novo, é preciso lembrar que ações desnecessárias não estão previstas, então dar uma espadada no vazio, ou andar em qualquer rota que não seja a correta está fora da animação. O analógico e o botão só vão funcionar nas cenas importantes – aquelas em que se você continuar sem fazer nada, será morto na hora.
Se você achava que “Ghosts ‘n Goblins” era uma máquina SAFADA de engolir fichas por conta de sua dificuldade insana, “Dragon’s Lair” leva isso a um outro nível. O jogo começa com o herói atravessando uma ponte até que ela cede sob seus pés, deixando o desajeitado cavaleiro pendurado por uma das mãos. Na água abaixo, monstros marinhos se aproximam e matam o personagem. Fim. SE FODEU.
O que diabos o jogador deveria ter feito, já que nos segundos iniciais do jogo NENHUM BOTÃO FAZ NADA? É preciso se acostumar a agir apenas nas situações de tensão, analisando o contexto e tentando dar comandos de acordo. Pendurado por uma das mãos, apertar o botão faz com que o herói afaste os monstros com sua espada; depois disso, é preciso colocar o analógico para cima para que ele suba pelo buraco e retome seu caminho. Quem te conta quais botões apertar, quando reagir, qual ação o jogo tem pré-programada dentro de sua animação engessada? Ninguém. O único modo de descobrir é na tentativa-e-erro, morte após morte, fazendo DÍVIDAS no fliperama da esquina.
Bem no fundo, em sua estrutura, “Dragon’s Lair” é um jogo bem convencional. Mas a impossibilidade de testar os comandos em momentos vazios, de fazer ações sem consequência, prejudica muito não apenas a imersão no jogo mas também a compreensão das regras do mundo. Só dá pra saber exatamente o que fazer depois de morrer A GRANEL. Mas depois de aprender, basta repetir aqueles comandos na ordem certa até assistir à cena final do jogo.
O FMV vive
Rick Dyer nunca desistiu do modelo inaugurado por seu “Dragon’s Lair”. Tentou lançar um console de mesa, chamado Halcyon, que continha um LaserDisc portátil e que rodaria exclusivamente jogos em FMV. O preço era tão exorbitante que só foram produzidas um punhado de cópias do aparelho, que sequer chegou a ser oficialmente comercializado. Mas quando o CD-ROM surgiu uns anos depois, mais acessível e com as mesmas possibilidades do LaserDisc, começou uma corrida no mundo dos videogames para ver quem iria incorporar primeiro a tecnologia. Em 1991 a Philips lançou o CD-i ao mesmo tempo em que a Sega VIOLAVA seu Mega Drive com seu adendo Sega CD. Tentando criar jogos que justificassem a parafernália, inundaram o mercado com jogos em FMV – incluindo o próprio “Dragon’s Lair”, ressuscitado mais de uma década depois, em 1994, para ambos os consoles. Como diferencial das versões domésticas, a possibilidade de ver na tela os comandos que você deveria estar executando, o que virou padrão nos jogos do gênero porque ter que ficar adivinhando é coisa de Walter Mercado.
Assim como “Dragon’s Lair”, o próprio Sega CD entrou pra história como piada. A mecânica dos jogos em FMV só começou a escapar do estigma e adentrar realmente a indústria quando foi incorporada em 1997 por “Die Hard Arcade“, que mesclava cenas de ação (em que o jogador podia fazer ações desnecessárias) com pequenos trechos em que o jogador precisava assistir a um vídeo e apertar os comandos que apareciam na tela na hora certa, aquilo que chamamos atualmente de “QTE”, ou “Quick Time Event”. Foi nesse formato que “Dragon’s Lair” deixou seu legado: às vezes, só poder agir quando o criador do jogo quer que você aja pode ser um recurso narrativo, um lembrete de que não somos nós lá dentro do jogo mas sim um personagem, exposto a regras e limitações específicas. Vários jogos grandes atuais implementam essa mecânica, de “God of War” a “Uncharted”. Ainda assim, a obra de Rick Dyer é um lembrete de que, se mal executado, esse recurso nos passa a sensação de que somos desnecessários no jogo, de que não fazemos real diferença – o que pode até ser verdade, mas não precisa ficar jogando na cara. Especialmente enquanto engole todas as nossas fichas no fliperama.