Grim Fandango
O ano de 1998 foi um dos mais importantes da história dos videogames, com o lançamento de “The Legend of Zelda: Ocarina of Time”, “Metal Gear Solid”, “StarCraft”, “Pokémon”, “FIFA 98“, “Half-Life”, “Banjo-Kazooie”, “Mario Party”, “Gran Turismo” e “Panzer Dragoon Saga”, só pra citar um punhado dos mais importantes. Para alguns, foi o ano que tornou os jogos aquilo que eles são hoje. Para outros, foi só o ano mais FODA desse humilde planetinha.
É deste ano mágico que saiu “Grim Fandango”, tentativa da LucasArts de colocar seus adventures de apontar-e-clicar para dentro do universo de gráficos 3D que impunham-se à época. O jogo foi um fracasso de público, desastre de vendas, mas a verdade é que ele faz justiça à classe monumental de 98: ainda que estabanado e com defeitos, deixou encubada uma possibilidade de como os jogos poderiam ser que foi desabrochar pra valer só uma década depois. Como os demais jogos daquele ano, e ainda que só tardiamente, “Grim Fandango” fez escola.
O jogo é fruto da mente de Tim Schafer, um dos responsáveis por escrever os hilariantes “The Secret of Monkey Island” e “Day of the Tentacle”, e a única pena por trás de “Full Throttle”, a obra-prima que levou o gênero adventure ao colo dos incrédulos. Dá pra dizer então que “Grim Fandango” vem de família nobre e ilustre, mas quer ser descoladinho – meio que por medo de que seus parentes pareçam nerds demais na frente das meninas. Antenado com os “novos tempos”, tem toda uma roupinha diferente que é justamente pra ver se as mina pira. Ao invés de gráficos pixalizados e cartunescos, a opção é pelos cenários pré-renderizados em 2D com personagens modelados em 3D, como introduzido por “Alone in the Dark” e imortalizado pouco depois por “Resident Evil”; ao invés de ficar clicando no cenário com um mouse, a opção é por comandos adaptados para um controle de console, já unânimes na época. O resultado é um jogo mais jovem, mesmo – roupagem mais acessível, escondendo dos preconceituosos sua origem como point-and-click, e atraindo a molecada com gráficos sofisticados. É em resumo um jogo de mouse disfarçado de console de mesa.
Mas ah, a gente sabe muito bem quem ele é lá no fundo. Quase inteiramente baseado na escolha de diálogos e em puzzles focados no uso de objetos certos no lugar certo, não dá pra disfarçar: é um point-and-click mesmo que você não aponte pra nada nem clique em nada. A mecânica funciona assim: o personagem se move através do direcional, ao invés de se clicar num lugar do cenário; e o personagem vai sozinho movendo a cabeça para indicar que está olhando os objetos passíveis de serem comentados, usados ou adquiridos no local, ao invés do mouse ter que caçar a tela em busca de pontos interativos. No fundo dá na mesma, mas a omissão do cursor prende mais o jogador ao corpo do personagem, ao invés de torná-lo uma figura onipotente que controla tudo de fora, aproximando mais a experiência dos joguinhos da moda, como o “The Legend of Zelda” lançado no mesmo ano, ou até qualquer “Mario” da vida. Também torna a coisa toda mais acessível para um controle com direcionais, podendo abrir mão do mouse, cada vez mais hostilizado no mundo dos jogos.
Essa ideia do personagem numa câmera em terceira pessoa olhar para os objetos com os quais pode interagir é sensacional e foi parar em “Shenmue” no ano seguinte, dessa vez com um analógico controlando o pescoço e consequentemente o ângulo de visão, e a possibilidade de mover o personagem indo parar nos gatilhos (era uma época em que dois analógicos era muita OSTENTAÇÃO). O esquema pode parecer bizarro, mas funciona muito bem quando a quantidade de coisas interativas é gigante e o foco está em fuçar, comentar e adquirir tudo que for possível, não sair por aí correndo pra encher inimigo de porrada.
Só que “Grim Fandango” não estava escondendo sua herança e sua mecânica interna apenas pra parecer modernoso e ser aceito pelas gatinhas; a intenção também era facilitar a mecânica porque dizia-se por aí (os RUMORES) que o mercado de adventures gráficos estava sumindo. Em parte porque eram considerados muito difíceis, muito lentos ou muito arcaicos, em parte porque cada vez menos jogadores mantinham-se nos computadores onde esses jogos existiam, as vendas de point-and-clicks caíam ano a ano e a LucasArts temia que o gênero sumisse do mapa, virasse coisa de nicho, lembrado por meia dúzia de velhos babões e seus mouses de bolinha. A maquiagem que “Grim Fandango” oferece ao gênero era uma tentativa de pegar o público dos consoles e atrair quem achava esses jogos muito impenetráveis. Mas não deu certo.
O jogo é fantástico, os diálogos são impecáveis e hilariantes, e sempre dispostos a enfiar muitos dedos em feridas expostas da cultura americana – não faltam críticas ao conceito de trabalho, ao capitalismo, referências a Marx e piadas políticas a rodo. A temática (a jornada dos mortos rumo ao descanso eterno, que em geral exige arrumar um emprego, seguir uma extensa burocracia, e tomar uma cachacinha que ninguém é de ferro) permite uma enorme riqueza visual e sonora, com referências folclóricas latinas e uma trilha que mistura jazz, folk e ritmos caribenhos. O problema é que os controles não eram tão acessíveis quanto se pretendia, já que cenários pré-renderizados precisam de mudanças de câmeras constantes e portanto comandar o personagem exige girar o tempo todo em volta do próprio eixo – é tipo alguém com LABIRINTITE dirigindo um TANQUE DE GUERRA por cima de GELATINA. E pra piorar, os puzzles são incrivelmente difíceis – alguns porque são sofisticados, o que é legal, outros porque são simplesmente incompreensíveis mesmo, o que é péssimo. Passei por pedaços desse jogo que mesmo após resolver algum puzzle, eu não fazia IDEIA do que ou como havia feito, tudo no randômico mesmo. Alguns desses quebra-cabeças simplesmente fazem mais sentido na cabeça do Tim Schafer do que no mundo real.
O resultado é que somente o público hardcore acostumado com o gênero topou a brincadeira de “Grim Fandango”, e esse público prefiria pegar um mouse mesmo e se livrar dessa camada de disfarce que o jogo escolheu adotar. Com um número tão restrito de jogadores, a LucasArts resolveu fechar o departamento de adventures e tentar coisas mais deglutíveis pelo público comum, que queria ação e apertar botões como se não houvesse amanhã. “The Dig” e “Grim Fandango” custaram caro demais e o retorno simplesmente não estava lá na época. Era hora de parar.
Mas essa mecânica de point-and-click escondida em controles convencionais de videogame de mesa influenciou “Shenmue” logo depois, os jogos da Quantic Dreams na década seguinte (em especial “Heavy Rain”) e por fim chegou na Telltale, empresa fundada pelos antigos funcionários da LucasArts que perderam seus empregos após “Grim Fandango”. Com a Telltale e seu “The Walking Dead”, os jogos de pura escolha e diálogo voltaram à moda causando uma explosão de novos point-and-clicks na geração que nem sabe o que é mouse – todos sem “point” e nem “click”, tudo na roupagem oferecida por “Grim Fandango” lá em 1998. Só que a nova leva não tem sinal do humor ácido, corajoso e cutucador de feridas de Tim Schafer – coisa que hoje em dia nem mesmo o próprio Tim Schafer faz. Meio em crise de identidade, “Grim Fandango” pode até ser um jogo tentando se fingir de outro, todo atrapalhado nas mecânicas e tropeçando pelos cantos em sua labirintite gelatinosa, mas no processo ele se tornou único e insubstituível – até a dublagem brasileira, que é questionável, conquistou um lugar nos nossos coraçõezinhos. Esse é o último jogo de uma era charmosa e sem pudores, e por isso há tanta comoção com o seu relançamento recente para Steam e PS4: as mina pira, mesmo que só postumamente. Num jogo sobre morte, isso não deveria ser problema nenhum.