Grand Theft Auto
No meio dos anos 80, David Jones era um game designer escocês tentando lançar num mercado sem muita tradição alguns jogos feitos em casa para o Commodore Amiga, computador popular na Europa. Seus jogos eram simples mas possuíam um senso de humor bizarro e um gostinho de violência explícita. Em 1991, David Jones conseguiu emplacar seu primeiro grande jogo, “Lemmings”, um puzzle em que o jogador deve impedir uma série de homenzinhos bizarros de seguirem uns aos outros rumo à morte certa, ajudando-os em seu caminho. Deixar esses homenzinhos caírem de grandes alturas é ao mesmo tempo hilário e desesperador, tendo em vista que eles EXPLODEM ao tocar o chão. O senso de humor bizarro e sanguinário de David está presente em “Lemmings”, mas seu visual inofensivo e seus puzzles desafiadores foram sucesso imediato. Por uns anos, a empresa fundada por David se ocupou apenas de lançar versões e continuações de “Lemmings” pra todas as plataformas possíveis.
Até que Shigeru Miyamoto, responsável por preparar os jogos de lançamento do futuro Nintendo 64 (e fã de “Lemmings”) resolveu convidar David Jones para fazer parte do seleto grupo de game designers que receberiam um protótipo do console para criar um jogo exclusivo. David topou a brincadeira e criou então seu primeiro jogo 3D, “Body Harvest”, em que o personagem principal é um soldado tentando salvar os humanos das mãos de alienígenas. O problema é que os humanos são FRÁGEIS: morrem o tempo inteiro berrando e sangrando por culpa de monstros do espaço, tiros equivocados ou desatenção no volante por parte do jogador. É claro que Miyamoto odiou o jogo, carimbou-lhe o selo de censura da Nintendo na testa e implorou para que David Jones fizesse apenas mais um puzzle para famílias. Resultado: David pulou do barco.
“Body Harvest” começou a mudar de forma quando David Jones descobriu uma nova tecnologia que permitia centrar a câmera em veículos vistos de cima e que conseguia renderizar o cenário rapidamente no processo, gerando uma enorme sensação de velocidade. O jogo começou a se focar mais e mais no uso de veículos, até que David pensou que seria possível usar aquela tecnologia para criar perseguições fantásticas entre policiais e bandidos entre vários jogadores. Rapidamente mudou de ideia porque concluiu que ninguém iria querer ser um policial e resolveu se focar apenas em bandidos fugindo da polícia. “Body Harvest” foi pra gaveta (de onde sairia muitos anos depois, alterado e finalmente lançado para Nintendo 64); David Jones passou a se concentrar nesse novo jogo, chamado então “Race-n-Chase”. Só precisava de alguém para bancar o projeto e lançá-lo no mundo, algo que o Shigeru Miyamoto nunca toparia.
Enquanto isso, Sam e Dan Houser eram dois irmãos ingleses apaixonados por hip-hop e cultura pop trabalhando na gravadora BMG, com a tarefa de enviar talentos da Inglaterra para gravar nos Estados Unidos. Quando a BMG resolveu lançar também jogos de videogame, os irmãos pularam de cabeça na empreitada, achando que seria a chance de unir seus interesses por música, cultura das ruas e a vontade de chocar o mundo. Sem nenhuma experiência com jogos, lançaram juntos uma ou outra bobagem de outros criadores até encontrarem David Jones desesperado para colocar sua cria bizarra no mundo. Fizeram alguns ajustes, colocaram uma dose cavalar de música no projeto, rebatizaram de “Grand Theft Auto” e simplesmente mudaram a história.
Um arcade de atropelar gente
Apesar de tentar recriar de maneira relativamente fiel várias cidades dos Estados Unidos, com um certo cuidado com a arquitetura, os carros e a presença de pessoas para tornar essas cidades vivas, “GTA” não tem qualquer intenção de ser uma simulação realista. Talvez uma das escolhas mais estranhas dessa parceria entre David Jones e os irmãos Houser é que o jogo nunca esconde ser um jogo: há um contador de pontos na tela como nos jogos antigos de arcade, que aumenta ao atropelar pessoas aleatórias na rua, matar policiais ou roubar veículos; as missões propostas pelo jogo aumentam os multiplicadores de pontos, para tornar seus crimes ainda mais rentosos; morrer ou ser preso tem como punição diminuir ou até zerar seus multiplicadores. O objetivo proposto de ser um bandido tentando subir de vida dentro dos grupos criminosos da cidade parece muitas vezes apenas uma desculpa para um jogo veloz, frenético e explosivo de acumular mais e mais pontos.
A “roupagem” bandido-e-mocinho com civis sendo atropelados não passa de uma PISCADELA dos criadores, uma piadinha, uma cutucada nas figuras de autoridade. Ela não é o fim em si, mas um adendo. “Grand Theft Auto” estava completamente seguro de estar entregando uma experiência de jogabilidade impecável, divertida e empolgante que não precisava de qualquer história, narrativa ou justificativa para existir.
David Jones estava feliz de que o jogo estava forrado pelo seu senso de humor bizarro e que pessoas explodindo ao serem atropeladas era engraçado. Os irmãos Houser estavam orgulhosos de que essa piadinha de colocar o jogador no papel de um bandido era um cutucão na ferida, uma pequena afronta aos jogos que só colocam o poder na mão dos mocinhos. Mas nenhum deles imaginava o tamanho que essa cria iria tomar.
Fora de controle
A jogabilidade simples que tinha na morte de civis e policiais apenas uma piada desimportante foi ignorada pelas autoridades e pela enorme maioria dos jogadores frente ao poder do TEMA. O jogo foi proibido automaticamente em muitos lugares do mundo, incluindo no Brasil antes mesmo de ser lançado; jogadores buscavam “GTA” apenas pela IDEIA de quebrar a lei, de dirigir um carro como doidos, de fugir da polícia. A roupagem era o que todos viam, a mecânica interna era quase desimportante.
“GTA” oferecia um jogo aberto em que o jogador era livre para acumular seus pontos como bem entendesse, fazendo as missões na ordem em que preferisse e da maneira que ele julgasse melhor. As leis do mundo de jogo são programadas e dadas nas mãos dos jogadores para que improvisem. É desse foco integral na mecânica que BROTOU um modo de jogo imprevisto: as pessoas estavam pegando “GTA” e ignorando completamente a pontuação, as missões e os pré-requisitos para abrir outras partes do mapa, armas e carros. Elas apenas queriam PERDER O CONTROLE, algo que nos é, enquanto sociedade, inteiramente proibido durante a total integridade de nossas vidas. Precisamos agir de maneira controlada desde crianças, seja impedindo a saída das fezes, seja com a vontade de trucidar o seu coleguinha de pré-escola que roubou o seu brinquedo. Nas relações sociais precisamos controlar nossos impulsos mais imediatos; em grupo, precisamos nos controlar de acordo com as regras e leis instituídas. A possibilidade de se libertar desse controle irrestrito de si mesmo está em poucas experiências para o cidadão comum, em geral na bebida, nas drogas e nas montanhas-russas, momentos raros em que o corpo sabe que não manda em nada, em que as restrições não funcionam. Acrescente então a essa lista um novo membro inusitado: “Grand Theft Auto”.
Soltando a franga
A recepção do jogo foi completamente inesperada para todos os envolvidos. As pessoas jogavam “GTA” para soltar a franga, sentirem-se livres, peitar a lei, e as autoridades ficaram horrorizadas com essa possibilidade nas mãos de crianças que deveriam estar aprendendo a se controlar o TEMPO INTEIRO. A mecânica de jogo, meio que ignorada nesse processo, acabou contribuindo com isso sem querer: focada inteiramente em PONTOS, tendo a ambientação como parte menor, acabou tornando a morte de civis e policiais algo BANAL, desimportante, esquecível. Ideal para que as pessoas perdessem um pouco o controle e não sentissem qualquer tipo de culpa ou consequência posteriormente, ao desligar o jogo.
Futuros “Grand Theft Auto” repensaram essa questão, tentando transformar a mecânica para que mortes tenham consequência psicológica, aumentando as piadinhas para que se tornassem críticas sociais profundas, e se tornando uma metralhadora giratória de DEDOS NAS FERIDAS mais doloridas do “sonho americano”. Mas o legado do primeiro “GTA” sempre se manteve vivo no uso do jogo como PLAYGROUND PARA DESPIROCAR por quem joga ignorando a história proposta – algo que nos ensina tanto sobre os videogames quanto sobre nossa vida em sociedade.