L’Heritage
Em 1985, quando o mercado de computadores pessoais ainda engatinhava pelo mundo, o governo francês teve uma ideia revolucionária: fornecer computadores nas mais de 50.000 escolas públicas francesas para que os 11 milhões de jovens em idade escolar no país tivessem acesso à tecnologia, a ferramentas pedagógicas interativas, e a linguagens básicas de programação. Na visão do governo, isso criaria toda uma geração de SUPER-PROGRAMADORES responsáveis por levar a França para ~O~ FUTURO. Para estimular a indústria local, a francesa Thomson forneceu os cerca de 120.000 Thomson MO5 que abasteceram as escolas de todo o país. Junto com as máquinas eram enviados programas pedagógicos desenvolvidos por uma jovem empresa do país, a Infogrames, para ajudar na formação tanto dos alunos quanto dos professores, já que a enorme maioria nunca havia tido qualquer contato com programas de computador antes.
Aproveitando a oportunidade, a Infogrames resolveu enfiar dentro do pacote de programas recebidos pelas escolas uma surpresinha: dois jogos sem qualquer pretensão pedagógica, só pra dar um gostinho do que os computadores poderiam proporcionar e fazer propaganda dos jogos comerciais da empresa – afinal, a Infogrames vivia é da venda de jogos para as plataformas do momento. Dá pra dizer que esses dois jogos entraram para a lista dos maiores clássicos da história dos videogames na França, já que a enorme maioria dos seus então 11 milhões de jovens tiveram contato com eles em 1986. O primeiro jogo era “Androides”, uma cópia descarada do jogo americano “Lode Runner” em que a graça estava em poder criar fases para que outros jogadores experimentassem, algo fantástico se você pensar que todos os computadores das escolas públicas francesas estavam todos ligados em rede na época. Já o segundo jogo, aquele que de fato nos interessa, era “L’Heritage” – “A Herança”, em português, e mais conhecido como “La Herancia” na versão em espanhol amplamente pirateada no Brasil para MSX no fim dos anos 80 – aliás, a melhor versão, com cenas adicionais e gráficos mais coloridos.
O projeto do governo francês de democratizar o acesso aos computadores através das escolas foi, em muitos aspectos, uma falha tremenda: custou uma fortuna e os computadores duraram muito pouco, quebrando com facilidade; fora que rapidamente os modelos MO5 ficaram ultrapassados, e as novas linguagens de programação não eram suportadas pelas antigas máquinas. Em poucos anos sumiram das escolas e viraram sucata, sem orçamento viável para substituí-las por versões mais modernas. Mas o projeto deixou seu legado: marcou “L’Heritage” na mente de toda uma geração e, com isso, fortaleceu uma cena local de criação de jogos que se orgulha de ser verdadeiramente única e revolucionária – e que resiste até os dias de hoje. É das mãos da própria Infogrames, em solo francês, que saiu “Alone in the Dark” e seus inovadores cenários pré-renderizados; o francês Éric Chahi é a mente solitária por trás de “Another World“; Michel Ancel é responsável por franquias como “Rayman” e “Beyond Good & Evil”; e o estúdio francês Quantic Dream tem na sua conta alguns dos jogos mais importantes da última década, como “Fahrenheit”, “Heavy Rain” e “Beyond: Two Souls”. Pode colocar esse sucesso todo na conta – ainda que involuntária – do governo francês, apesar dos pesares.
Se “L’Heritage” tinha o benefício de ser um dos únicos jogos disponíveis – e a gente sabe que criança com só um jogo COCÔ disponível, joga mesmo assim – também tinha o mérito de ser incrivelmente criativo, ter jogabilidade acessível, muito a frente do seu tempo em termos de design de jogo, e uma narrativa capaz de agradar diversos públicos. A ideia básica é a seguinte: ao começar o jogo, o personagem principal Peter Stone (Pedrão Chapadão?) recebe um telegrama avisando que sua tia idosa faleceu deixando para ele, único herdeiro, uma fortuna inacreditável – isso é, desde que ele cumpra o desejo de sua falecida tia, que é ver seu sobrinho repetindo o feito da sortuda senhora e ganhando 1 milhão de dólares durante uma única noite nos cassinos de Las Vegas. Ou seja, pra ganhar a fortuna milionária, Peter Stone precisa JÁ TER GANHADO seu primeiro milhão de dólares num cassino. Olha, não sei vocês, mas se eu ganhasse 1 milhão de doletas na roleta, NÃO IA PRECISAR de porcaria de herança nenhuma.
Com essa premissa, o jogador deve controlar Peter Stone em sua corrida contra o tempo para colocar as mãos no dinheiro herdado. Primeiro, precisa fazer as malas e sair do seu prédio em no máximo 10 minutos para pegar um táxi, sendo constantemente atrapalhado pelos vizinhos que não param de cobrar dívidas antigas; em seguida é preciso conseguir embarcar no avião a tempo, evitando os guardas, a burocracia, e um eventual terrorista no avião em épocas pré-11 de setembro; por fim, já em Las Vegas, é preciso jogar nos cassinos durante a noite toda para coletar 1 milhão de obamas até às 8 horas da manhã a fim de poder receber a herança.
Todo esse processo acontece em primeira pessoa, através dos olhos de Peter Stone, e o jogador controla a movimentação do personagem e um cursor na tela com o qual escolhe os objetos do cenário com os quais interagir. É, portanto, um raro caso de point-and-click em primeira pessoa (algo que só voltará a aparecer na década seguinte, com os poucos jogos de apontar-e-clicar do Sega CD). Mas a parte mais interessante não está na perspectiva, mas na mecânica do clique: ao invés de possuir uma série de comandos possíveis, ou uma lista de verbos que regem o ato de clicar (como “pegar”, “puxar”, “empurrar”, “dar”, etc) tão frequentes nos jogos do gênero na época, “L’Heritage” opta por uma abordagem minimalista em que o clique se adapta à ação mais apropriada ao momento. Clique numa maçaneta e o personagem não tentará colocar a maçaneta no bolso, mas sim abrir a porta; clique num passaporte e aí sim ele será devidamente guardado na bagagem; clique num objeto do seu inventário quando se está conversando com uma pessoa e o personagem dará esse objeto ao seu interlocutor; etc. O que pode parecer à primeira vista uma simplificação primitiva dos controles é na verdade aquilo que passamos a chamar de “comando contextual” quando foi magistralmente implementado em 1998 por “The Legend of Zelda: Ocarina of Time” – um único botão responsável pela interação passa a ter funções distintas dependendo do contexto em que se encontra o personagem.
É engraçado ver como “L’Heritage”, um dos primeiros adventures gráficos, colocou em prática em 1986 a mecânica que se tornaria canônica nos jogos de apontar-e-clicar quase 30 anos depois. Basta ver a trajetória da LucasArts: primeiro seus adventures funcionavam com listas de verbo que mudavam as funções do clique; depois simplificaram para apenas alguns verbos básicos, dispostos numa interface gráfica e não textual em “Full Throttle”; em seguida separaram cada verbo num botão específico do controle em “Grim Fandango“; e aí Tim Schafer tentou trazer de volta o gênero em novos jogos em que você só tem um tipo de clique que muda de acordo com o contexto, como o bem recente “Broken Age”. A indústria avançou, avançou, avançou, e aí chegou no ponto que o “L’Heritage” já estava lá no começo de tudo.
A jornada de Peter Stone rumo à herança ainda tem outra grande sacada: é um adventure em que é possível MORRER. Tomar decisões equivocadas, virar na esquina errada, tomar o ônibus errado rumo ao aeroporto, não saber negociar com terroristas, apontar uma arma para a cara das pessoas são todas ações que resultam em prisão, morte ou incapacitação física – o que no fim dá na mesma, porque é FIM DE JOGO. Some isso ao eterno contador que está rolando e que te força a cumprir as tarefas o mais rápido possível e você tem uma experiência extremamente tensa – especialmente porque as mortes são PRA VALER, se morreu tem que começar de novo. É o que hoje em dia se chama charmosamente de “permadeath” ou “permanent death”, uma escolha de design que faz os erros cometidos durante a jogatina terem um PESO real, consequências drásticas e causarem real PAVOR no jogador. Ao chegar em Las Vegas, Peter Stone precisa ganhar 1 milhão no cassino, e conforme o tempo vai passando e o horário limite se aproxima, o medo da “permadeath” vai ficando maior, porque se o tempo se esgotar é necessário começar TUDO DE NOVO. Quando o desespero começa a aparecer porque MEU DEUS, NÃO VAI DAR TEMPO, aí é preciso recorrer a uma última solução: a roleta russa. Uma bala é enfiada no tambor de um revólver, o tambor é girado de maneira aleatória, e aí Peter Stone tem que apertar o gatilho contra a própria cabeça. Se a arma disparar, morreu – já era, FODEU, perdeu tudo, volta pro começo. Mas se não disparar, um sádico doidão te paga 30 mil mangos. Vale a pena? Nem a pau. Só o CAGAÇO de perder tudo pode te levar a uma decisão tão drástica – que invariavelmente vai te levar à cara de TOTAL DESCRENÇA quando o diacho da arma disparar.
A experiência de “L’Heritage” é recheada desses momentos de absurdo, tensão e um humor debochado, exacerbado pelo visual caricatural de todos os personagens. É uma piada que se leva pouquíssimo a sério, mas que te deixa na pontinha da cadeira e eventualmente com uma arma na cabeça. Não é à toa que a molecada francesa não se esqueceu do joguinho, e não foram só eles. Cientes de que a obra era bacanuda e atraía tanto garotos quanto garotas, a Infogrames investiu pesado para levar o jogo à maior parte da Europa, com campanhas de marketing locais e traduções para inglês, alemão, italiano e espanhol – que foi a que chegou aqui nas mãos tupiniquins. Foi o meu primeiro contato com o mundo dos point-and-clicks no disquetinho chamado “La Herancia” e por isso é uma lembrança carinhosa do meu passado, mas ao mesmo tempo é também um pequeno vislumbre do que seria o futuro do gênero, quando acuado pela redução do mercado ele correu de volta às suas origens minimalistas e sua acessibilidade.