Space Channel 5
“Aliens invadiram e estão forçando as pessoas a DANÇAR”. É com essas palavras que a protagonista Ulalá explica ao jogador a premissa absurda de “Space Channel 5”, jogo de ficção científica em que a apresentadora de um telejornal espacial resolve salvar o universo de uma invasão alienígena ao vivo pra aumentar a audiência – e tudo na base da dança, claro. É tipo se um Marcelo Rezende de saias e visual anos 60 resolvesse lidar com suas notícias sensacionalistas pessoalmente, e o público em casa fosse apoiando ou abandonando a atração de acordo com o desempenho dele nos passos de dança, executados em confrontos com os alienígenas dançarinos – é a junção bizarra de “Cidade Alerta”, “Dança dos Famosos”, um clipe do Michael Jackson e aquela dose de absurdo que só os melhores desenvolvedores japoneses conseguem oferecer.
O simples fato de que essa loucura chamada “Space Channel 5” exista já é uma história fascinante. Em 1999 a Sega já tinha uma enorme coleção de franquias de sucesso cultivadas desde o Master System, passando por alguns dos arcades mais famosos de todos os tempos e o sucesso global que foi o Mega Drive: Sonic, Golden Axe, Phantasy Star, Shining Force, Alex Kidd, Panzer Dragoon, Shinobi e uma infinidade de outras séries. Seria uma saída simples e óbvia trazer novas versões desses jogos para qualquer novo console que a empresa lançasse – fórmula que a Nintendo aplicou sempre com excelente grau de sucesso. No entanto, o fracasso comercial que foi o Sega Saturn mudou completamente a lógica da empresa. Desesperados porque o console não vendia a contento nem sequer no Japão, os engravatados da Sega clamaram por uma retomada aos velhos tempos dos arcades – não trazendo de volta aqueles antigas franquias, mas sim dando autonomia e carta branca para que os estúdios internos da Sega fizessem o que bem entendessem. O ano final do Saturn é um mar de bizarrices: simuladores de relacionamento em robôs gigantes, jogos de terror incompreensíveis, romances interativos adultos. Na hora do desespero, uma empresa que sempre apostou na criatividade virou terra de ninguém.
Quando o Dreamcast foi lançado precocemente, frente ao fracasso do Saturn em se tornar comercialmente viável, os estúdios internos continuaram com a mesma autonomia. Franquias conhecidas ficaram de lado enquanto os estúdios internos criavam novos personagens, novos gêneros e novas marcas. Foi nessas circunstâncias que Tetsuya Mizuguchi, o homem responsável pelo sucesso dos arcades “Sega Rally”, recebeu a incumbência de criar qualquer jogo que ele bem entendesse – desde que fosse um jogo capaz de também atrair mulheres que fossem jogadoras casuais. Na época o mercado de jogos para mulheres se restringia a uma ou outra adaptação de alguma franquia famosa externa aos videogames. Eis, pra variar, a Sega olhando para a frente ao colocar um dos seus maiores estúdios internos para focar nesse público.
Mizuguchi fez a lição de casa e através de uma série de pesquisas percebeu que mulheres desinteressadas por videogames sentiam-se atraídas por puzzles – algo que o resto do mundo demorou para perceber, mas que hoje se confirma ao dar uma olhada na demografia dos jogadores de “Candy Crush” pelo mundo. Juntando a descoberta ao seu interesse pessoal por música e a carta branca recebida pela Sega, temos então um puzzle em que o jogador deve repetir os movimentos de dança sugeridos por alienígenas para derrotá-los – enfiados numa temática espacial e preocupados com a audiência televisiva simplesmente porque sim.
A ideia é tão maluca e fascinante que, perto do fim da produção do jogo, Michael Jackson ouviu falar do projeto e EXIGIU fazer parte do jogo. Michael sempre foi um grande fã dos videogames da Sega e tinha uma excelente relação com a empresa desde que virou jogo para Mega Drive com “Moonwalker”, então sentiu-se no direito de chegar exigindo uma participação. Num jogo sobre duelos de dança com centenas de personagens malucos, perder a oportunidade de ter Michael Jackson DE GRAÇA era impensável. Então deram um migué e trocaram um dos reféns dos aliens pelo Michael, colocaram alguns dos seus passos de dança icônicos no desafio que o jogador deve vencer, e o resultado é que o jogo ganha alguns mil pontos de absurdo no processo.
Por trás do visual charmoso de anos 60 e suas muitas DROGAS, da música deliciosamente grudenta e do tema espacial cômico, dá pra encontrar (se você cavar com pá) o talento inegável de Mizuguchi em ação. A premissa simples de repetir os movimentos de dança que são dados através de comandos no controle é torcida, espremida, virada de cabeça pra baixo e de dentro pra fora para criar momentos de jogabilidade única e puzzles que misturam comandos visuais com comandos sonoros – às vezes com um desmentindo o outro, exigindo que você seja capaz de selecionar sua atenção e DESLIGAR uns pedaços do cérebro. É uma aula de profundidade dentro de um conceito de jogabilidade básico, perfeito para atrair o público casual mas fazer os jogadores mais habilidosos suarem BICAS.
A continuação de “Space Channel 5” foi lançada quase 3 anos depois, já como uma das canções de morte do Dreamcast – tanto é que saiu ao mesmo tempo para o rival Playstation 2. Nela os puzzles são levados a níveis épicos, a jogabilidade mostra não ter limites e Michael Jackson é um personagem jogável e com enorme participação na trama da história. Juntos, os dois “Space Channel” formam uma franquia inusitada que virou uma das caras da Sega nos tempos atuais – mesmo tendo sido criada apenas em 1999, nos tempos da “terra de ninguém” dos estúdios internos.
Ainda que o pouco sucesso do Dreamcast tenha limitado seu alcance, “Space Channel” mostrou que mulheres casuais também eram um público importante, que é possível agradar marmanjos e marmanjas na mesma franquia, e foi um dos passos mais importantes para a FEBRE de jogos de dança que assolou o mercado alguns anos depois. Infelizmente, eles só se popularizaram de verdade com as tecnologias de sensores de movimento, fazendo com que você precisa SE MEXER para poder aproveitar a jogatina, o que é um INSULTO. “Space Channel” resiste à passagem do tempo como o último jogo em que você pode dançar no conforto do seu sofá – salvando Michael Jackson das garras de alienígenas dançarinos ao vivo na televisão espacial.